segunda-feira, 26 de julho de 2010

diário do poeta inglês albert herbert

"a perfeita união da natureza do leão com a sua dominação cheia de mensidão para com a essência oposta de sua leoa, que ama por amar, embora ame o tolo, mas que não o é em usar de sua juba protetora, sendo tal que é o reconhecimento profundo da beleza de sua oposta e congruente natureza, elevando-a para elevar-se, glorificando-ses."

Para além dos olhos


Naqueles tempos, éramos eu e o Pai. Na verdade, também tinha a Malhada, mas não sei se ela conta não. O que me diz o senhor? Pelo menos, devesse contar. Para nós, o senhor sabe, ela era assim, quase que um membro da família. E por falar em família, tenho que lhe dizer. O Pai teimava comigo que éramos uma família como outra qualquer. Mas hoje, sinceramente, tenho para mim que ele me dizia essas coisas só mesmo para me alegrar. Afinal, não era todo mundo que concordasse que uma família assim sem mãe fosse uma família normal. O dia em que ela foi-se embora, eu nem me lembro mais.

Nunca tive a esperança de que ela voltasse, apesar de o ter pressentido uma vez, deitado na janela. Nesse dia, meus olhos corriam longe que só o senhor visse. Mas tudo não passou de ilusão. Também nunca pedi ao Pai me falasse daquela mulher, como, por vezes, ele a chamava. Ela voltando, era mais um motivo para que eu me quedasse ali, quando sabia que existia todo um mundão aí afora. Mas o Pai, apesar de sempre me dizer que não gostava de tocar no assunto, acabava terminando por falar “naquele nome”, com todas as tristezas que ele sempre trazia. E então me punha a ouvir, mais uma vez, aquela história de amor que tinha um final triste, como, aliás, eram todas as histórias de amor para o Pai. “A mentira tem pernas bonitas, meu filho”, repetia. E então, suspirava e fazia um longo silêncio. “Mas sua mãe era uma boa pessoa. Não quero que penses mal dela”. Ele dizia assim, com a mão encostada no queixo.

Naqueles tempos, para falar a verdade, nem sabia se eu era triste ou feliz. Ia vivendo. Ia correndo e crescendo por aquelas bandas, meio solto, meio preso, respirando e torcendo, me ralando por vezes, ao final, levantando sempre. Às vezes, sentia que algo me prendia ali naquela terra, e não era por causa do barro alaranjado que se pregava liguento sob os meus pés descalços. Era uma sensação de não saber se podia, se realmente podia com tudo aquilo que existia para além dos meus olhos. Será que fora dali se andava diferente, se respirava de modo diferente? Vai ver era bobagem da minha cabeça. Mas, bem lá no fundo, era um pensamento que sempre vinha me visitar, com aqueles seus passamentos na barriga ou aquela vontadezinha de ficar só comigo. Acho que nem não era tão triste assim. Se entristecer assim do nada é bobagem, não é mesmo? Vai era só cansaço, que vinha do nada e do nada se ia, como se nunca houvesse chegado. Na verdade, eu acho que naqueles tempos eu cansava mesmo era de solidão. Não é certo o que eu digo?

Devia de ser por aí. Acho que na vida não nascemos tristes nem felizes, tudo é uma questão de pertencimento, sentir-se parte, o senhor sabe? Pertencer assim a pessoas, lugares ou mesmo àquelas paisagens, que de tão lindas prendem nossos olhos como se quisessem até namorar com a gente. Naquela solidão, cheguei até mesmo a dar para inventar meu próprio mundo, a brincar de ser rei e correr terra, sendo de tudo um pouco, a cada segundo. Nessa história já fui pássaro, herói e até vilão. Mas, nestes enredos, o melhor de tudo era se apaixonar. Ah, como era bom. Amor de mulher bonita, formosa, meio tímida e maliciosa, com cheiro de flor e beijo de tarde preguiçosa. Vai ver toda solidão é uma espécie de loucura. E a minha, longe de me libertar, me prendia mais e mais àquela terra.

E no auge da minha inocente loucura, passei a conversar e convidar as casas do vilarejo a visitarem meu mundo, misturando dentro de mim seus formatos e suas cores, imaginando os sons do vento batendo nos telhados e fantasiando o tempo e as histórias que elas carregavam consigo ao longo daqueles anos. Acho que o que me impressionava nelas é que quando tudo passava, quando todos morriam ou iam-se embora, elas ainda estavam lá, vivinhas e firmes como pedra, prontas para contar todas as histórias. Histórias dos nascimentos, namoros e conquistas daquelas pessoas que, perto delas, passavam tão rápido como uma brisa de tarde. Será que quando nem eu nem o Pai fôssemos, elas ainda estariam lá para contar a história de nossas saudades? O senhor deve saber melhor do que eu.

Mas das casas, na verdade, só não gostava era da minha mesmo. As casas nossas assim, vistas de dentro, parecem como que devoradoras de gente. A minha então, era um nozinho na garganta. Foi o que acabei por comprovar no dia da chuva. Eu estava ali, mal acabara de chegar, trazendo os panos e a serragem que o Pai havia pedido, quando começou o aguaceiro. Com ele, a tempestade foi trazendo também todos aqueles barulhos e fraquezas de sempre. E eu, naquele instante, olhando pela janela, era como se cada gota que caísse fosse parar bem dentro de mim, como se o peito meu fosse feito daquela mesma terra molhada que a agora a chuva encharcava. E ela ia entrando, se acomodando pelas frestas e goteiras, pingando sobre minha cabeça, jorrando diante dos meus olhos, ficando também dentro de mim. Aquela água parecia que me revirava por dentro, fazendo-me questionar coisas sobre as quais jamais pensara. Doideira? Tentava tirar de mim esses pensamentos, fechava os olhos, tentava me concentrar em alguma coisa. Quisera eu, naqueles tempos, que os pensamentos também se fechassem junto com os olhos. Será que todas as crianças sentiam coisas assim? Era o que eu me perguntava naqueles tempos, quando o meu pequeno corpo já não cabia mais em si de alguma coisa, alguma coisa que, quando eu ia pensar o que era, se desmanchava diante dos meus olhos, ou que, quando vinha ao pensamento, já distanciava vagamente do sentir. Hoje, quando tento olhar para trás e pensar nisso tudo, falta-me mesmo uma imagem que dê vazão a qualquer palavra. Careço de entender essas coisas. Na verdade, o senhor sabe, olhar para trás é quase sempre como inventar algo, imprimir uma intenção ao passado, buscando qualquer coisa que dê sentido aos anos idos. No final das contas, acho que o melhor mesmo da infância são só as lembranças que inventamos, os contos de fadas que sobram no mar do indizível.

O fato é que, no meio da chuvarada toda, o Pai estava ali, costurando alguma coisa que só Deus sabia para que servisse. E, enquanto mais ele trabalhava, mais se punha a falar, falar e falar. Era quando eu virava para a malhada, tentando imaginar como ela via o mundo nosso. Nessas horas, chegava até pensar que a Malhada era gente, gente mesmo, daquelas que entendem das coisas, no sabendo - não sabendo. Eu tinha isso para mim acho que era por causa daqueles olhares vagos, daqueles momentos em que ela se levantava e ficava olhando para o Pai, com aquela terna melancolia, como se no arregalar daqueles olhos, ela afagasse ou lambesse os sofrimentos do velho. Nessas horas, a Malhada mais parecia um anjo, daqueles que olham assim para os pecadinhos humanos sem julgá-los por seus erros e talvez até mesmo felizes pela fé que os anima. Era assim que eu a via naqueles tempos. Mas por dever de prudência ou medo da loucura, tentava desver. Corria, então, para ouvir o pai, que depois de tanto palavrório, parecia que se arrependesse do que dizia. “Vá dormir meu filho, vá dormir”. E era o que eu fazia. E foi o que eu fiz naquela noite.

De manhã, como é do vosso conhecimento, era Sábado de Aleluia. O pai me acordou o Sol mal estava nascendo. Dei um pulo na cama e, mal-humorado, fui atrás do velho. Ao apressar dele, corri ao encontro daquele homem, meu Pai, meu irmão das Almas. “Pronto para a malhação de Judas?”, perguntou. Eu não sabia o que respondesse. Na dúvida, continuei andando. Caminhamos alguns quilômetros até a cidade, onde ia ter parte a tal da malhação. Meus pés já estavam quase que rachando naquele sol quente. No andar, o pai ia quieto, mas seu cenho franzido parecia transbordar de dizeres. No caminhar ao lado daquele homem, sentia que aos poucos eu, que ainda era menino, ia como criando também passos de homem. Tentava imitar seu andar, seu falar e as coisas que ele dizia, mas pensava comigo que Deus me livrasse de sofrer tanto assim na vida. Queria ser filho dele em tudo, mas não por parte de sofrimento. Por alguns mistérios dessa nossa travessia, dizem que o sangue passa mesmo de uma só vez e eu, mesmo sem perceber, já começava a sofrer também. Sentia que alguém tinha derramado o coração do Pai todinho dentro do meu e que ambos tínhamos nascido para aqueles sofrimentos. Pudesse ser assim?

Quando dei por mim, o pai resolveu parar. E ficou ali, com aquela boca aberta e o olhar distante, perdidinho naquela imensidão de terra seca, quase que se misturando com a paisagem toda. Então, como se não existisse mais nada no mundo, ele começou a observar atentamente o tal do Judas que trazia consigo, com uma cara assim, daquelas que alguém faz quando pensa alguma engenhosidade. De repente, tirou a camisa velha que trazia e vestiu no boneco. Depois, observou a cena por mais alguns segundos. Respirou profundamente. Resolveu botar também o chapéu. Ao final, contemplou o que tinha feito e viu que era bom. O Judas, agora, era todinho o Pai, só faltava mesmo era o sopro daqueles olhos distantes, talvez o entristecer ao fim do dia. Por que fizesse aquilo? Não carecia de perguntar, ele mesmo respondeu. “Pra deixar de ser besta, meu filho. Pra deixar de ser besta de sair da nossa terra e vir pra este lugar, onde só Deus, só Deus é por nós.” A verdade é que, na vida minha, aquela era a única terra que eu conhecia, mas, por algum motivo, quem sabe por ser filho do Pai, ou quem sabe por não ser filho de quem quer que seja, sentia que aquele lugar também não me pertencesse. Talvez de mim mesmo, meu senhor, fosse só a travessia.

Como era de ser, o Judas foi levado à Malhação, com os pertences do Pai e tudo. Quando retornamos à casa, o velho parecia cansado, não sei de andança ou de solidão. Como de costume, sentou-se na cadeira de sempre e começou a olhar para o fundo de um copo vazio. No olhar, a Malhada o velava sem cessar, como fazia todos os dias à sua chegada. Tudo do mesmo jeito, tudo como havia de ser. Como se não houvesse mais o que fazer, respirei fundo e fui ter à janela. Debrucei-me sobre o parapeito e me pus a contemplar a paisagem que cabia naquela moldura. Não demorou para que meus olhos começassem a vaguear. Através daquela janela, tudo parecia distante. Ao mesmo tempo, era como se todo o mundo coubesse ali. Mas já não me contentava em ver o mundo daquele jeito. Eu queria tocá-lo, sentir seu cheiro, sentir meu pé roçando em outros campos e terras. Era quando no meio desses devaneios, eu lembrava do Pai. O que seria dele quando eu não estivesse mais ali?

Mas não. Eu bem sabia. Não era o Pai quem me impedia de partir. Dele, de alguma forma, eu já havia partido faz tempo. Era aquele incontável, aquele indizível, aquele nó na garganta que me arrebatou no dia da chuva e me espremeu contra meu mundo que agora me devorava pela simples possibilidade de partir. Será que tudo ia continuar assim para sempre e nada mais iria acontecer? O que poderia me prender agora? Será que era aquela casa, o Judas ou Pai? Só sabia que precisava partir e partir logo. Mas meus pés não se moviam. Não é mesmo a terra o que prende os nossos pés. Olhando pela janela, me deu vontade de chorar. E era como se todo o mundo coubesse ali. O senhor sabe? Era preciso correr terra.