segunda-feira, 24 de maio de 2010

Encontro

De súbito de um olhar já de um gesto
Teus pés rubricados de areia e pedra
Me alcançaram e carinhosos de encontros
Em mim fincaram com um buque de sombras.

As ruas e viletas tu abandonaste
E a lua te seguiu com suas nádegas de areias,
Queimando teu corpo com um fogo azul
Cheirando a canela de espelho e prata.

A noite e o cimento tu repartistes
E pousou um luar em meu coração
E janelas e estrelas me descobriram

Eu te encontrei túrgido e ainda morto
Esperando a vida para eu ser metade
Esperando a vida para eu ficar contigo.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Bipolar

Ora explode,ora cessa
Ora grita,ora reza
Ora chora,ora ri
Ora,forte,ora,fraco
Ora muito,ora pouco
Ora a Deus,ora Alá
Ora mal,ora bem
Ora amor,ora desdém
Ora Oxum,ora além
Ora tique,ora taque
Ora vai,ora vem.

terça-feira, 11 de maio de 2010

A carta



Chegou cansada como de costume. Suspirou lentamente. O dia havia terminado. Mais um, igual a todos os outros, sem por nem tirar. Sobre sua cama, uma misteriosa carta a esperava. Um leve frio subiu-lhe o corpo, corando-lhe levemente a face. De onde viria aquilo?



Minha querida,


Escrevo-te para dizer que já vou. Sim, já vou. Não fique assustada, tudo será como antes e sempre mandarei notícias, esteja onde estiver. Não diga nada para seus pais. Logo logo, eles também saberão. Por que fiz isso? Ah, não pergunte meus motivos, minha pequena. Acho que na minha idade, a gente tem mesmo é que provar para Deus que ainda vive, para que, assim, ele não nos leve de vez. Agora que seu avô se foi, nada mais impede. Vou viver.

Não quero que me entendas mal. Por alguns anos, até fui feliz com ele. Tudo o que construí na vida foi fruto de nossa união. Além do mais, ele me deu os maiores presentes da minha vida, minhas queridas netinhas, como você, que, em segredo, sempre soube ser a minha predileta. Mas também não posso dizer que o amava. Não. Nunca amei. Falo de amor assim: daquele de peito escorrendo, daquelas horas a suspirar e imaginar encontros inesperados, amor de vida toda espreitando cada novidade, ladrilhando os caminhos do ser amado. Você sabe né, filha? Isso já passou na minha vida. E era tão bom... Eu sei que você sabe, afinal, sempre fomos muito parecidas.

Filha, não quero que fiques com raiva de mim. Mas preciso confessar-te. Abri a terceira gaveta da tua mesinha. Invasora? Traidora? Qual o quê, filha? Chama-me do que quiseres. Abrir aquela gaveta para mim foi como desenterrar os tesouros mais puros da minha infância. Mas aí, veio aquele nó na garganta, aquela vontade de me expulsar de mim mesma que, pelas coisas que escreves, desconfio que sabes melhor do que eu. Ai, como me lembrei dele, daquele jeito dele de ser assim gentil, especial! Como ele era lindo, filha! Devias tê-lo conhecido. À uma hora dessas, ele te levaria para passear pelas praças, museus e prédios antigos, contanto todas aquelas histórias de amor e de guerras, de um jeito que só ele sabia fazer.

Encontrar-me assim contigo, filha, com as tuas palavras, foi como encontrar-me em um sonho, onde eu, você e ele éramos todos, todos felizes. Mas encontrar assim com os sonhos, com a eminência de vê-los realizados, você sabe, é como encontrar-se também com o medo. E como me deu medo filha! Um medo assim de ver ele de novo, de sofrer por ele outra vez, de chorar por ele, que vontade de gritar! Que vontade de voltar no tempo e entrar naquele trem junto com ele, no dia em que o deixei partir para todo o sempre. Queria morrer em mim mesma, sossegar nos meus braços vacilantes que deixaram a vida passar só para poder espraiar os olhos por ela e ver como me tornei triste. Desde então, não tive mais vontade de olhar as estrelas, essas aragens do divino que me lembram quão covarde eu fui. Guardo comigo o peito extravasado, dilacerado, essa tragédia profunda e silenciosa que só um coração de mulher sabe como ocultar em um canto recôndito de si mesma.

Filha, vi também o que escreveste sobre ela. Pobre pequenina! Querias ser como ela não é? Inveja-lhe as roupas, as amigas, os amores? Querias fazer cada coisa que ela faz, desferindo olhares de cuidado e revista, não sabendo se é certo assim invejar a quem tanto se ama? Alguns momentos, eu bem sei, querias que ela não existisse. Papai e mamãe seriam só para ti, não é? Poderias tê-lo sem dó nem culpa, e como vocês seriam felizes... Afinal, depois dela, ninguém combina mais com ele no mundo do que você. Filha, se eu sei o que é isso! Mas que importa!

Escreve, filha, escreve. Aponta tuas dores com a faca amolada do teu peito, aventura-te por entre as veredas da vida, pintando tonalidades e descobrindo artefatos que passaram assim, despercebidos por esta multidão. Afasta-te deles filha, afasta-te. Afasta-te como quem se afasta de um cálice que, em se tomando, toma-te o tempo e subtrai a alma. Guarda tuas mágoas em uma caixinha, bem bonita, daquelas de música e bailarina. Pedala teus sonhos por entre a madrugada, percorre as ruas para dizer que existe uma mulher dentro de ti, dentro dessa menina que agora se abre em prosa e verso para marcar a passagem de um tempo sem volta para o abismo dos sentimentos. São teus pensamentos que se esvaem em devaneios? Não. É o teu corpo que começa a falar.

Mas aprende, aprende de uma vez por todas, filha. Ninguém entende nem nunca entenderá. Essa é a nossa travessia. Atira-te, abraça livremente tua paixão, cria, cria, cria! Refaz teu caminho, antes que seja tarde. Corre! Lembra-te de mim, que deixei meu candeeiro apagado em um canto escuro de quarto, lembra-te de mim, de tudo o que eu não fiz, de todas as coisas que eu guardei só para minhas mágoas, do quanto eu esperei não sei o que para começar a viver segundo minha própria tragédia. Vai, cai depressa, cai de pressa no doce abismo das tuas ambições. E ama mais depressa ainda. Abre teu coração, derrama nele o perfume das tuas palavras. O mundo não faz mesmo sentido, mas como tuas palavras, ele pode ao menos tornar-se belo...

Filha, tu bem sabes. Sou agora apenas uma pobre velha, de malas prontas para viver contrariando os dias que ainda me restam. Da vida, quero a arte de deixar alguma arte, participar da poesia e partir para um canto que ainda não tenho. Disse que escreverei. Menti. Esta é a última carta que receberás de mim. Nunca mais me verás, mas verás dia após dia os papéis que guardas na terceira gaveta de tua mesinha. Alguns dias, preferirás odiá-los, queimá-los ou guardados como flor infecunda dos teus desejos, mas eles são a vida, a resistência, teu beijo que emerge forte e lento para tocar os lábios úmidos do mundo que te contempla renitente. Não deixe o amor para depois, um adeus assim é sempre a véspera da derrota para o coração amante. Se pensas que não o ama mais, foi só o teu medo que te cingiu em ti mesma. Abre tua imaginação e o teu peito, e deixa vazar pelos teus olhos o riso e os pensamentos que tiveste enquanto sonhavas alegremente com o teu amor, teu proibido amor, teu nefasto amor, teu não-amor.


Com carinho,

Vovó.


Ao terminar de ler, ainda paralisada, deixou cair a carta no chão. Com os olhos distantes e úmidos, pôs-se a olhar pela janela.