sábado, 7 de julho de 2012

Interpretação fenomenológica do poema "Pelo o Bem das Crianças", de Felipe de Campos Ribeiro. (Por Ricardo Evandro S. Martins).


O belíssimo poema do músico e poeta Felipe de Campos Ribeiro inicia seu "discurso" com indagações. De Campos Ribeiro, assim como um filósofo, parte, já no primeiro verso da estrofe (1), com questionamentos acerca da ideia do "Bem" e do "Tempo". Tais indagações são enfrentamentos. De Campos Ribeiro trata sobre o "Bem" ao lado do "Tempo". O poeta pergunta-se sobre a possibilidade de haver qualquer paralelo entre "Bem" e "Tempo". O "Bem" posto ao lado do "Tempo" é um valor ocidental e moderno. A ideia de que as virtudes correm no tempo de maneira crescente é típica do onirismo da modernidade. Logo nos versos seguintes, o poeta confirma tal assertiva ao perguntar-se sobre a possibilidade de uma "paripassidade" entre o "Bem" e o cavalgar dos acontecimentos históricos. É de fácil compreensão a ideia de "Bem" como valor, como virtude, isto é, como "meta". Mas ainda permanece a questão sobre o "Tempo". O próprio "Tempo" nesta estrofe (1) é tratado como o "tempo moderno": retilíneo e progressivo.  Como um "Tempo" que não retorna. Um "Tempo" que anda pra frente conforme a sapiência dos "homens". Felipe de Campos Ribeiro questiona, finalmente, se os homens farão o desenvolvimento no decorrer do "Tempo". Com esta indagação o poeta enfrenta a suposta possibilidade  de haver "paripassidade" entre a sapiência, representando a ideia de "Bem", e o "correr das horas" do "Tempo",  mostrando-se como "Tempo" enquanto sucessão de "presentes", antecipado pelo progresso tecno-científico e biopolítico.

Na segunda estrofe os questionamento são cessados, ao menos de maneira explícita. Neste momento poético, Felipe de Campos Ribeiro passa a usar algumas figuras simbólicas, forjando algumas metáforas: "Os lobos procuram carne..." e os "...cordeiros procuram letras...", afirma o poeta. Os "lobos", aqui, mostram-se como animais vorazes em busca de "carne", de "vida". São figuras de poder e com poder. A "carne" é o símbolo do sangue, da proteína, do calor, do alimento vital.  E a "fome" dos "lobos" é a vontade de se apoderar de algo ou de alguém. O objeto da "fome", contudo, não é re-velado. Mas, daí, o poeta parte para falar dos "cordeiros". Seriam os "cordeiros" as presas dos "lobos"? Mas que "cordeiros" são estes? O que fazem no texto poético de Para o Bem das Crianças


Os "cordeiros" são tradicionalmente simbolizados como dóceis e sacrificáveis. Também são representados em rebanhos. Eles estão sempre em coletivo. O rebanho é a condição de sobrevivência do "cordeiro", pois os "lobos" estão à solta nas "noites negras". E os "cordeiros", no texto, são antropomórficos. Eles sabem ler. Procuram letras. Os "cordeiros" precisam de um Pastor. O rebanho não se arrebanha por si mesmo. É preciso uma liderança. Um discurso-guia para acalmar os "cordeiros" diante dos "mistérios" noturnos.  Aqui, nesta estrofe (2), é possível ver dois tipos que vagam pela noite: um, feroz, voraz, faminto de vida; e, outro, pacificado, liderado e faminto de liderança discursiva, procurando "letras" (como as "letras" bíblicas e de éticas laicas).


Porém, os dois tipos expostos no poema podem tratar-se de um licantropo. Os dois tipos podem tratar-se de um só símbolo. De um homem-lobo. Parte "cordeiro", parte "lobo". Trata-se de um "cordeiro-lobo", como a representação do homem e sua ambiguidade. Um homem pode ser "cordeiro" (faminto de doutrina) e do mesmo modo um "lobo" (autossuficiente, apesar de também poder estar em matilha, pois, mesmo com toda sua "força de vontade", o lobo está sempre infantilizado pela sua oralidade, já que tem "vontade de comer", procurando um "corpo" para botar dentro da boca, o que lhe deixa emocionalmente imaturo). 


A "Noite", então, surge como ela é: misteriosa. E, pelos mistérios, espanta. A "Noite" joga com o ocultamento das coisas e com o ocultamento de si.  Ao mesmo tempo que pode ser o avesso da verdade enquanto alethéia, a noite pode ser o próprio caminho para o dia, isto é, para o des-ocultamento causado pela luz do dia. Assim, a jornada pela noite, em que só participam os corajosos, ainda que dentro de um rebanho ou caçando como um lobo, pode levar ao nascimento da hora do des-ocultamento de um dia que não esconde. Portanto, a noite pode ser um via para a verdade enquanto alethéia (aquilo que não está oculto).

Só no estrofe (3) que o "menino" emerge explicitamente. Antes dets estrofe (3), o poeta questionou como um filósofo, tipificou como um psicólogo e, com isto, contextualizou o ambiente "noturno" da infância como um poeta. Desse modo, Felipe de Campos Ribeiro fala de um "menino". Um "menino" que dorme profundamente, enquanto os carros ("lobos"?) passam por ele atrás de alguma coisa ou de alguém. Segundo o poeta, os carros passam sem pena, sem empatia, enquanto dorme o "menino". A vida cotidiana, dos afazeres, dos compromissos, dos deslocamentos de carros, das coisas banais que temos que fazer no dia a dia, acabam por passar pelo "menino" que dorme na calçada. Na mesma estrofe surge alguns questionamentos, porém, menos contestadores e mais sugestivos: há "moral" neste mundo? De quem é a "moral" que fala-se tanto? Quem tem a 'moral'? Quem é o "-se" do "fala-se"? 


Na estrofe (4), é possível perceber a rapidez dos centros urbanos, as luzes, e efemeridade dos acontecimentos, que funcionam como características de uma modernidade tardia ou mesmo de uma pós-modernidade, onde os sonhos são feitos de neon, engolindo a pre-sença (existencia) do "menino". Sua pré-sença no mundo, enquanto ser-no-muno, é marcada, logo a seguir, na estrofe (5), pelo a situação de abandono. O "menino" tem como mundo o espaço que não é dele. Um mundo (a calçada) que não foi projetado para ser sua morada. E, dormindo na calçada, o "menino" está coberto por um jornal. Aqui, é perceptível o mundo industrial onde o "menino" vive, mas que, em contrapartida, não pôde oferecer "facilidades" nem o "'Bem'-estar" prometido pela industrialização para com sua existência. O jornal como cobertor é a própria rapidez com que o útil-de-ontem torna-se inútil-no-presente. As notícias estampadas pelo seu corpo de nada podem fazer para com à sua existência. Nem a publicidade do letreiro, as notícias ruins e a publicidade política no jornal...


"Nada" pode salvar o "menino"... 


Quanto à salvação, o poeta nas estrofes (6) e (7) passa a ironizar a doutrina-guia dos cordeiros(-lobos). A lógica que faz os carros, reabilitada pela lógica de uma razão prática, é/foi incapaz de "cuidar" deste ser-outro que é o "menino". Felipe de Campos Ribeiro ataca, outra vez, e ironicamente, as vãs tentativas dos "cordeiros-lobos"  de cuidar do "menino", assim como da vã culpa dos "cordeiros-lobos" pela falha. Especificamente na estrofe (7), o poeta ironiza os "atos falhos" do homem laico/ateu que insiste em recorrer à Quem ele mesmo fora o assassino. "Reclame ao Estado, altivo", o poeta diz, soando como um "Querem reclamar? Reclamem para si mesmo". 


O poeta pede para que não chorem pelo "menino". A apatia não tem retorno. O poeta chega a agredir estes homens (8). Chama-os de "modernos fracos". Estes homens - nossos homens de agora - acovardaram-se. Enfraqueceram-se depois da morte de seus reis e de seu Deus. Os modernos, posteriormente, foram abandonados pelo "ser". Caminho natural, inclusive. E diante do deserto que se expande, o poeta ressalta a ilusão da insistência para com as metas laicas, frias, técnicas, mecânicas e burocráticas. "Não adianta..." discursar e gesticular, diz o poeta. O Pastor abandonou os homens. Nem sabem mais se são eles os "cordeiros" ou se são os "outros" os "lobos". O que fazer quando estão por si mesmos? O falatório impessoal dos discursos normativos, ideológicos, e dos imperativos  categóricos, darão conta? Pois, mesmo que se fale livremente via doutrinas, calando o silêncio...Mesmo que se crie mecanismos, querendo encontrar o problema do lógos... No fim das contas, retornarão estes homens ao "Othon" (Hotel): morada passageira, calma, distante e hedonista (10). 


Por qual o motivo a militância? O que querem os "nobres" desta "cidade"? Sendo ainda mais explícito, o que querem os "nobres" de Belém, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Fortaleza, de Porto Alegre?  O poeta, então, acusa-os de "cordeirinhos". Animais necessitados de discursos-guia. Animais necessitados de acolhimento e cuidado, do mesmo jeito que o "menino" necessita. Felipe de Campos Ribeiro vai mudando, portanto, o tom nas estrofes seguintes, mas permanece com o tema do abandono, cuidado e proteção (11). 


O "ser pede proteção", diz o poeta. Em verdade, no mundo do "menino" do poema, o "ser", enquanto "meta", "princípio", "valor", abandonou os homens. Assim, o "ser" que pede proteção no poema não trata-se do "ser dos entes em geral" que abandonara o homem, mas sim do "ser" dos homens, quer dizer, as suas próprias "existências". São os homens que pedem pela proteção perdida e não "ser" enquanto valor, meta ou princípio. O "ser", repito, enquanto existência dos homens, é quem pede proteção. Foi o sentido da sua "existência" que esvaziou-se pelo abandono do "ser" enquanto valor. E no falatório escondem-se. Impessoais. Imersos na generalização do cotidiano (12, 13, 14).


 Como se vê, o significado do símbolo do "menino" des-protegido passa a ter outro sentido. O "menino" sem cuidados simboliza os próprios homens abandonados pelos seus próprios princípios (16). O poeta começa a "re-velar", como uma memória re-memorizada/re-significada, que os de maior idade ainda são "meninos". "Meninos" perdidos. E que agora vivem sem "Eros". Sem "amor". Sem tesão à vida.  E esta re-lembrança é despertada pelo questionamento acerca do "Nada". Qual a função do "Nada" se não a de nos re-lembrar do "inexperenciável"? O "Nada", no sentido existencial, é a nossa finitude. A re-cordação da nossa finitude nos causa angústia. A nossa insuficiência perante o "Nada" inevitável e o fato filosófico de termos sido abandonados por alguém ("Um Pai sempre há na trama...") nos causa angústia, ansiedade. E antes que queiramos criar outros mecanismos para salvar o "menino", lembremos que é o "menino" aquele quem pode nos salva em tempos de deserto. 
Todavia, lembra o poeta Felipe de Campos Ribeiro, apresentando uma outra "ética", somente aquele que puder lagrimar pelo "menino", ou seja, aquele que puder ter cuidado por si e pelos outros, saindo da apatia e da indiferença, é quem poderá salvar-se (17, 18, 19, 20). 


Felipe De Campos Ribeiro é um poeta questionador do que está estabelecido, sem dúvidas, mas também um questionador de si. Pois pergunta-se, quase que ironicamente (...), como se estivesse duvidando de si (e está), quem poderia ser o "Cristo"? Quem poderia ser um cordeiro a ser sacrificado em prol da salvação de si mesmo?  


O poeta ainda pergunta-se se pode haver moral no universo. Ele pergunta pelo motivo d'ele insistir, por meio da Arte poética, em ainda falar em "salvação", "meninos", "Bem" e "Tempo". Felipe de Campos Ribeiro chega a perguntar aos leitores diretamente pelo motivo dos mesmos estarem lendo esse poema! Seriam para salvarem-se?  Para não chorarem? Mas, como? Haveria algo neste mundo para sentir? O poeta, então, re-toma para si e para os leitores o tema do "Bem" e do "Tempo. Mas, agora, condicionando-os. Se os valores ("Bem") não avançam (no "Tempo"), então que, ao menos, salvemos as nossas crianças/"meninos" cobertas pela nossa indiferença e pelo cotidiano jornalístico que é apatizante com nós mesmos e com os outros.


Por fim, Felipe de Campos Ribeiro tenta adivinhar o que passa-se com os leitores. Pergunta se há "nós" nos "corações de pedra" dos leitores. Neste trecho, o poeta faz um trocadilho entre o substantivo "nó" (como, por exemplo, um "nó de corda"), que está no plural, e o pronome da segunda pessoa do plural, "nós", o que, por consequência, possibilita que encontremos outro sentido à pergunta do poeta: haveria alguém, qualquer pessoa com que convivemos ou que somos, cordeiros e/ou lobos, residente em nossos corações? Se nós não pudermos responder esta pergunta, o poeta, ao menos, pede para que ouçamos a música. Pois a Arte é um acontecimento da verdade. Da verdade sobre "nós". 






Por Ricardo Evandro S. Martins. Em 07/07/2012.