terça-feira, 12 de julho de 2011

Humilhados e Ofendidos: A lei e a justiça em Dostoiévski e Derrida

          

            O personagem escritor do romance de Dostoiévski, sempre preferiu pensar em suas obras e sonhar como as escreveria do que escrevê-las de fato. Parece que entre a imaginação e a linguagem sempre há um abismo intransponível. A mesma coisa parece ocorrer no momento em que escrevo. Fechar a leitura de Humilhados e Ofendidos sob a perspectiva e a presença do da lei e da justiça na obra é reduzir infinitamente seu escopo. E, no entanto, ainda que sob o efeito de um sinuoso deslocamento, o tema da justiça parece transpirar no decorrer das páginas da obra. Aliás, talvez a justiça só seja mesmo possível sob a eterna tentativa de captura dos deslocamentos sob os quais sua possibilidade vez  por outra emerge diante de nós.
            Vânia, escritor pobre e fracassado, vivendo problemas amorosos e financeiros, não lembra a cisão profunda da alma encontrada em um Ivan Karamazov (Irmãos Karamazov) ou num Raskólnikov (Crime e Castigo), tampouco a vocação quixotesca do Príncipe Mítchkin (O Idiota) ou a beatitude de um Aliocha (Irmãos Karamazov). Longe de representar a profundidade psicológica que marcaram os personagens do autor em sua maturidade, Vânia revela sua personalidade aos poucos, do mal-estar do escritor que não cabe mais em si à expressão humana do encontro místico com o Outro. Aliás, mesmo advertindo não ser místico, Vânia sabia que o que aconteceria dali pra frente seria mesmo “extraordinário”. Talvez seja justamente o desabrochar modesto do personagem durante a obra que realce a simplicidade que contém o sentido místico de seus atos. “Nada há que já não esteja revelado”.           
            Já de início, o herói depara-se com a cena de um velho e seu cachorro, ambos maltrapilhos e moribundos, sendo hostilizados em uma confeitaria onde haviam entrado para se aquecerem. Não demorará muito, após a morte do velho, para que o escritor conheça Elena, a neta do falecido, entregue à própria sorte e sujeita a todo o tipo de humilhações depois que sua mãe fora rejeitada pela família. Aos poucos, Vânia torna-se protetor da menina.
            Vânia também vê a antiga família na qual fora criado, dissolver-se em meio a privações, intrigas e paixões. Sua amada Natacha apaixona-se perdidamente por Aliocha, o mimado e ingênuo filho do Príncipe Valkóvski, este último responsável pela ruína da família de Natacha. Contrário à união do filho com a herdeira de seu inimigo, uma moça pobre e sem posses, o Príncipe faz tudo para humilhá-la, até separar Aliocha definitivamente dela.
            O Príncipe, na obra, acaba emergindo como o antagonista dos humilhados e ofendidos de Vânia. Com o intento de gozar infinitamente de seus prazeres e da riqueza, o Príncipe não mede escrúpulos ao passar por cima de toda e qualquer pessoa, mesmo que isto signifique arrasar cruelmente com suas vidas. Ainda resquício de um certo maniqueísmo de Dostoiévski em sua primeira fase, o Príncipe Valkóvski não deixa de ser um personagem interessante. E é através dele que a questão da lei vai penetrar na obra. Esta é sempre invocada como a força que pode insurgir-se para fazer valer a convenção, ainda que sua injustiça seja patente a qualquer sensibilidade humana:


“Ela tem de me agradecer só por eu não ter agido contra ela como se deve, pela lei. Saiba, meu poeta, que as leis protegem a tranqüilidade da família; elas garantem a obediência do filho ao pai e aqueles que desviam os filhos das obrigações sagradas aos pais não são incentivados pelas leis”.


            Natacha desafiou a tradição de sua sociedade, sua família e a própria lei para viver sua paixão por Aliocha, paixão, que ela sabia desde o início, poder levá-la à ruína. Privada de todo e qualquer recurso financeiro e de influência junto às instituições, temia ser esmagada pelo poder do Príncipe, que, mesmo sinalizando com movimentos de paz, não demorou a revelar seus verdadeiros intentos:


“E não sabe que deveria me ser agradecida: já há muito tempo que eu poderia colocá-la numa casa de correção, sendo pai do jovem o qual a senhora estava corrompendo...”.


            O discurso onipotente do Príncipe calcado em suas posses e influências recorre ainda, mais uma vez, à força da lei. Uma força marcial, pronta para ser direcionada contra os humilhados e ofendidos, pelo recurso à tradição não refletida, que acaba por travestir-se em recurso instrumental nas mãos do inescrupuloso Príncipe. Seria este o caráter próprio da lei? Pelo menos, pode-se dizer que ela sempre aparece desassociada de um senso de justiça que a sua própria legitimidade deveria promover. Maslobóiev, rábula amigo de Vânia, explicou a este, por exemplo, que faltou apenas um bom advogado para que o pai de Natacha vencesse uma demanda judicial contra o Príncipe, demanda na qual, a boa razão demonstrava que a boa fé do velho era patente.  Na letra fria e obscura da lei, distante daqueles que clamam por justiça, vale mais o conhecimento dos procedimentos e o uso da influência, que se sobrepõe a todo o clamor humano contra a privação dos bens e da dignidade mais essencial ao ser humano.
            Talvez uma análise mais pobre ou apressada, buscasse vincular a idéia de lei no pensamento de Dostoiévski a uma eterna identificação com a lei do mais forte ou dos “poderosos”, como se esta fosse apenas o recurso externo de um poder coeso, pronto para ser mobilizado com o intento de manter sua auto-reprodução. Este tipo de análise ainda que não seja, em certas condições históricas e sociais, totalmente destituído de sentido parece pecar pela generalização e por não considerar que o que pode estar em jogo é uma relação bem mais complexa. Ao identificarmos a lei, esta lei, com a lei dos poderosos ou de uma classe em particular, surge-nos, inevitavelmente, em oposição a figura de uma outra lei, ou sua abolição completa, por meio de uma “justiça revolucionária”. Se seguirmos, no entanto, os passos do autor e sua obra, sabemos ser este um caminho improvável para Dostoiévski, crítico implacável dos movimentos ditos revolucionários no século XIX.
            Uma outra hipótese precisa ser testada. A justiça aqui, ou simplesmente o apelo a ela, parece insistir que sua aparição possa se dar por outros caminhos que não o da engenharia social reformulada. Pode-se adiantar, no entanto, e talvez com certo grau de obviedade, que o direito não se confunde com a justiça. Na interpretação do místico Berdiaeff acerca da Lenda do Grande Inquisidor (Irmãos Karamazov) é justamente a engenharia social de qualquer tipo que Dostoiévski parece negar com todas as suas forças. “O socialismo é o papismo secularizado”, já diria o místico russo, rejeitando de uma só vez o exercício do poder temporal da Igreja e as novas doutrinas sociais, ambas representantes, segundo ele, da negação da liberdade contida no exemplo do Cristo diante da figura do Grande Inquisidor. Na dialética do espírito de Dostoiévski, como lida por Berdiaeff, é impossível ser livre e feliz ao mesmo tempo. A felicidade seria a forma racional de organizar a sociedade, o “eudemonismo social”, a própria lei, seja conservadora ou revolucionária, enquanto a justiça, o movimento do espírito rumo a liberdade, seria somente possível em face ao rosto do Cristo.
            Vânia sentia um desconforto profundo com a cidade grande, sua hipocrisia e suas desigualdades. Mas não parecia insurgir-se de modo algum contra a “ordem estabelecida” de modo a identificar as opressões ali vividas a algum tipo de ordem em particular. Por vezes, pode-se dizer até que coadunava com as tradições do seu tempo, como na aceitação de sua impossibilidade de casar-se com Natasha por falta de dote ou contra as vicissitudes comerciais de seu editor, pobre homem que em sua opinião estava apenas cumprindo o seu papel na sociedade. Porém, há algo que intriga em Vânia. De seus atos surgem uma infinita compaixão, que não se dirige à sociedade, mas não hesita em insurgir-se contra ela, não em nome de um sistema social, mas em nome de uma compaixão infinita que conduz inexoravelmente ao Outro.
            Não estaria aqui presente a possibilidade da justiça levantada por Jacques Derrida em seu “Força de Lei”? Derrida também nega, contrariando certos autores das “escolas críticas do direito”, uma definição da lei necessariamente como poder exterior mobilizável por uma classe, mas defende que o momento instituidor e justificador do direito contém em si mesmo uma violência performativa que não é justa e nem injusta por si mesma, que se mantém e se institui por uma boa dose de crença. Se o direito sustenta-se então por um tipo de crença e não por ser justo, onde estaria então a justiça?
            Para Derrida, a justiça é uma aporia. A justiça é uma vontade,  a justiça é um apelo à justiça. O problema surge porque o direito é um elemento de cálculo. Para Derrida, é inclusive justo que haja um direito, mas a justiça é algo em si mesmo incalculável. A decisão entre o justo e o injusto nunca é garantida por uma regra. Para que se garanta a justiça, é preciso que se olhe para as singularidades, grupos e indivíduos que em suas próprias existências são insubstituíveis. Neste raciocínio, a justiça já não se garante por leis universais, mais aqui e agora, no presente concreto, diante da injustiça concreta. Para fazer valer suas reflexões, o autor defende ainda sua ferramenta desconstrucionista, que, para ele, longe de representar um niilismo como querem alguns de seus críticos, recorre a uma responsabilidade sem limites diante da história memória e da história da justiça, denunciando seus limites teóricos e injustiças concretas, recorrendo ainda à própria responsabilidade e justeza de nossos atos frente a justiça.
            Conforme avança em seu raciocínio, Derrida aproxima-se da noção de justiça presente na obra do filósofo judaico Levinas. Para este, “a justiça é a “direiteza da acolhida feita ao rosto”. A base da justiça não é mais “o conceito de homem”, mas o de outrem: “a extensão do direito de outrem” é a de “um direito praticamente infinito”. A equidade não é mais igualdade, proporcionalidade calculada, mas a dessimetria absoluta. A justiça, como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acontecimento e a condição da história.
            Neste momento, a reflexão trazida por Derrida aproxima-se inesperadamente de Dostoiévski. Há um apelo concreto e infinito a um sentimento que se opõe a lei, mas que em certos momentos demonstra-se tão óbvio e poderoso que já não se pode duvidar de sua força e verdade. Este sentimento não pode ser deduzido de leis ou princípios universais, mas é encontrado na compaixão profunda que se dirige ao Outro. Estariam aqui Derrida, Levinas e Dostoiévski unidos pelo cordão umbilical que os liga aos primórdios da tradição judaico-cristã? O que mais ela poderia nos ensinar em termos de justiça? A lógica dessa compaixão, ou seu caráter ilógico frente as convenções estabelecidas, emerge curiosamente no austero e impiedoso pai de Natacha, ao perdoar e acolher a filha de volta à casa, com o perdão infinito de quem acolhe o pródigo. Aqui, não por acaso, o discurso é dirigido diretamente a Deus:


“Oh, agradeço-te, Deus, por tudo, pela tua ira e pela tua graça! Pelo teu sol, que brilhou agora, depois da tempestade, sobre nós! Por todo este instante, eu agradeço! E que sejamos humilhados, que sejamos ofendidos, mas estamos todos juntos novamente, e que triunfem agora esses altivos e arrogantes que tinham nos ofendido e humilhado...Não tenha medo Natacha....Nós iremos de mãos dadas e eu lhes direi está é a minha filha querida, minha filha amada, minha filha inocente que vocês humilharam e ofenderam, mas que eu amo e abençôo eternamente!”


            A força fenomenológica deste tipo da expressão da justiça é poderosa demais para ser botada em questão. Resta saber quando realmente estamos diante dela e não apenas agimos em seu nome. É preciso investigar sua origem, seus rastros, descontinuidades e contradições ao longo da história. Aliás, resta-nos ainda perguntar como a noção de justiça, como aqui posta, pode se articular com o direito necessário. Não haveria justiça nos próprios sistemas sociais ou, pelo menos, uns que permitam mais a promoção da justiça do que outros? Ou seria esta simplesmente uma forma equivocada de colocar a questão? Reflexões como estas parecem durar uma vida toda. O fato é que sempre teremos Humilhados e Ofendidos em nosso caminho, clamando por uma justiça que deve ser feita aqui e agora.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Conversa de amigo




As luzes da cidade batiam contra os meus olhos distraídos. Sentir aquela luz nas minhas pupilas restaurava a consciência do meu estar naquela cidade desconhecida que, aos poucos, ia tomando como minha. Na boca, um cigarro, passos lentos como sem dono, andar sem motivo, procurando quem sabe tragar a hora e deter o tempo alvissareiro que passava diante de mim como um trem veloz. No bar, o amigo esperava.
Sentei-me lentamente, botando os cotovelos sobre a mesa. Pedi uma Germana, como de costume e perguntei ao amigo sobre a família e a vida, mas não prestei atenção na resposta. Há uns dias, eu já estava completamente imerso em meu próprio mundo, ainda me impregnava nas roupas e no pensamento o perfume que ela deixara em minha cama antes de partir.
Meu amigo percebeu que havia algo de errado comigo, perguntou-me de que se tratava, mas eu não pude dizer uma palavra sequer. Comunicar aquela lembrança era como desmanchá-la diante dos meus olhos. Ela era para mim como um sonho que não podia ser contado, uma fábula de um reino desconhecido, guardada em um baú de avô ou dono de sebo, como uma relíquia que não pode vir ao mundo sem se perder por completo.
Depois da terceira dose de cachaça, permanecia imóvel segurando a cabeça com o punho esquerdo. Na mão direita um cigarro, cotovelos sobre a mesa, mais um amigo se juntava a nós. Eu, no entanto, com a garganta lavada em aguardente, sentia apenas a saudade escorrer através dos olhos. Eram as lágrimas da distância que pediam passagem, lembrando-me do dia em que estava tão perto dela que se fechavam meus olhos ao simples toque de sua pele alva.
Depois de alguns meses separados pela vida, voltei a me encontrar com ela em uma noite cinzenta e chuvosa. Não sabia se depois da distância, ela ainda nos via como os amantes que fomos outrora. Foi então que veio o abraço apertado, o sorriso rasgando o rosto como uma represa partida e o toque das bocas que se beijavam e mordiam como se precisassem desesperadamente uma da outra.
Já era tarde. A cidade inteira estava vazia e nada mais restava a fazer senão aquilo que queríamos fazer desde sempre. Levei-a para a minha casa. Ela logo se deitou em minha cama. Entre as colchas e travesseiros, seus gestos de vergonha e preguiça transformam-se em valsa para os meus olhos, como se cada movimento daquele corpo fosse executado com a graça da mais solene das bailarinas. Foi quando eu a contemplei com ternura e aquele fogo que ardia em meu corpo, sem desaparecer, deu vazão ao terno encantamento de ter aquela mulher em meus braços. “Rolou ou não rolou?”, perguntariam meus amigos, mas para mim, naquele momento, aquilo simplesmente não fazia sentido. Sentia que compartilhava com aquela mulher um milagre profundo no qual o sexo certamente era parte, mas a parte de um todo que era muito mais que sexo. Um todo que não estava em mim e não estava nela, mas num ponto eqüidistante de nossas saudades, que nos impeliam irresistivelmente na direção do outro.
Ao vê-la ali, deitada em minha cama, contanto qualquer história triste de sua vida solitária, abraçava aquele corpo como se o quisesse colá-lo para sempre junto ao meu, para que todo aquele sofrimento transbordasse também sobre mim, para que eu pudesse então, quem sabe, purgá-lo em consolo e poesia. Ela estava quase dormindo, mas a cada beijo meu podia ver um sorriso de contentamento irromper em sua face. Era uma leveza profunda que eu sentia e ela também sentia. Não havia tempo e nem mundo lá fora. Havia somente os nossos corpos, uma história sem enredo que se bastava por si, onde o início e o fim convergiam, da mesma forma que convergiam os dedos que se entrelaçavam e os nossos pés que se cobriam. Dormir com aquela mulher, foi como compartilhar o mais genuíno de mim, minha solidão temperada com afagos de infinita ternura.
“Sabe, camaradas”, começou um de nossos amigos, interrompendo minha longa digressão solitária, “vocês podem até estranhar, mas vou te dizer. Ontem transei com uma mulher e ela acabou dormindo em minha casa. Que terrível acordar com alguém que você não conhece. De manhã, queria que ela virasse um pedaço de pizza ou, quem sabe, um garrafão de água”. “Pelo menos, comeu!”, respondeu o outro, “tem gente que deixa pros outros fazerem o serviço”. O colóquio que passou a ser travado destoava tanto das lembranças que eu agora remoia, que o fato não deixou de ser irreverente para mim, mas quanta verdade não havia nele! Passei a interagir timidamente com meus camaradas, mas no fundo, minha expressão grave e taciturna valia mais do que qualquer palavra. A conversa de amigo, alguém já disse, se dá, aliás, no tipo de silêncio que somos capazes de compartilhar do que em qualquer palavra proferida.
Ao comentarem sobre o meu ar grave e taciturno, meus amigos falavam baixinho entre si: “é mulher, com certeza que é”. E eu ria mais uma vez, pensando no trecho de um livro que lera na véspera e como nossa conversa de amigo me levara a fazer a descoberta, que para mim valia mais do que qualquer teoria científica. Pensava agora, no pequeno trecho do livro, que dizia com toda a justeza: “o sono compartilhado é mesmo o corpo de delito do amor”.