terça-feira, 5 de julho de 2011

Conversa de amigo




As luzes da cidade batiam contra os meus olhos distraídos. Sentir aquela luz nas minhas pupilas restaurava a consciência do meu estar naquela cidade desconhecida que, aos poucos, ia tomando como minha. Na boca, um cigarro, passos lentos como sem dono, andar sem motivo, procurando quem sabe tragar a hora e deter o tempo alvissareiro que passava diante de mim como um trem veloz. No bar, o amigo esperava.
Sentei-me lentamente, botando os cotovelos sobre a mesa. Pedi uma Germana, como de costume e perguntei ao amigo sobre a família e a vida, mas não prestei atenção na resposta. Há uns dias, eu já estava completamente imerso em meu próprio mundo, ainda me impregnava nas roupas e no pensamento o perfume que ela deixara em minha cama antes de partir.
Meu amigo percebeu que havia algo de errado comigo, perguntou-me de que se tratava, mas eu não pude dizer uma palavra sequer. Comunicar aquela lembrança era como desmanchá-la diante dos meus olhos. Ela era para mim como um sonho que não podia ser contado, uma fábula de um reino desconhecido, guardada em um baú de avô ou dono de sebo, como uma relíquia que não pode vir ao mundo sem se perder por completo.
Depois da terceira dose de cachaça, permanecia imóvel segurando a cabeça com o punho esquerdo. Na mão direita um cigarro, cotovelos sobre a mesa, mais um amigo se juntava a nós. Eu, no entanto, com a garganta lavada em aguardente, sentia apenas a saudade escorrer através dos olhos. Eram as lágrimas da distância que pediam passagem, lembrando-me do dia em que estava tão perto dela que se fechavam meus olhos ao simples toque de sua pele alva.
Depois de alguns meses separados pela vida, voltei a me encontrar com ela em uma noite cinzenta e chuvosa. Não sabia se depois da distância, ela ainda nos via como os amantes que fomos outrora. Foi então que veio o abraço apertado, o sorriso rasgando o rosto como uma represa partida e o toque das bocas que se beijavam e mordiam como se precisassem desesperadamente uma da outra.
Já era tarde. A cidade inteira estava vazia e nada mais restava a fazer senão aquilo que queríamos fazer desde sempre. Levei-a para a minha casa. Ela logo se deitou em minha cama. Entre as colchas e travesseiros, seus gestos de vergonha e preguiça transformam-se em valsa para os meus olhos, como se cada movimento daquele corpo fosse executado com a graça da mais solene das bailarinas. Foi quando eu a contemplei com ternura e aquele fogo que ardia em meu corpo, sem desaparecer, deu vazão ao terno encantamento de ter aquela mulher em meus braços. “Rolou ou não rolou?”, perguntariam meus amigos, mas para mim, naquele momento, aquilo simplesmente não fazia sentido. Sentia que compartilhava com aquela mulher um milagre profundo no qual o sexo certamente era parte, mas a parte de um todo que era muito mais que sexo. Um todo que não estava em mim e não estava nela, mas num ponto eqüidistante de nossas saudades, que nos impeliam irresistivelmente na direção do outro.
Ao vê-la ali, deitada em minha cama, contanto qualquer história triste de sua vida solitária, abraçava aquele corpo como se o quisesse colá-lo para sempre junto ao meu, para que todo aquele sofrimento transbordasse também sobre mim, para que eu pudesse então, quem sabe, purgá-lo em consolo e poesia. Ela estava quase dormindo, mas a cada beijo meu podia ver um sorriso de contentamento irromper em sua face. Era uma leveza profunda que eu sentia e ela também sentia. Não havia tempo e nem mundo lá fora. Havia somente os nossos corpos, uma história sem enredo que se bastava por si, onde o início e o fim convergiam, da mesma forma que convergiam os dedos que se entrelaçavam e os nossos pés que se cobriam. Dormir com aquela mulher, foi como compartilhar o mais genuíno de mim, minha solidão temperada com afagos de infinita ternura.
“Sabe, camaradas”, começou um de nossos amigos, interrompendo minha longa digressão solitária, “vocês podem até estranhar, mas vou te dizer. Ontem transei com uma mulher e ela acabou dormindo em minha casa. Que terrível acordar com alguém que você não conhece. De manhã, queria que ela virasse um pedaço de pizza ou, quem sabe, um garrafão de água”. “Pelo menos, comeu!”, respondeu o outro, “tem gente que deixa pros outros fazerem o serviço”. O colóquio que passou a ser travado destoava tanto das lembranças que eu agora remoia, que o fato não deixou de ser irreverente para mim, mas quanta verdade não havia nele! Passei a interagir timidamente com meus camaradas, mas no fundo, minha expressão grave e taciturna valia mais do que qualquer palavra. A conversa de amigo, alguém já disse, se dá, aliás, no tipo de silêncio que somos capazes de compartilhar do que em qualquer palavra proferida.
Ao comentarem sobre o meu ar grave e taciturno, meus amigos falavam baixinho entre si: “é mulher, com certeza que é”. E eu ria mais uma vez, pensando no trecho de um livro que lera na véspera e como nossa conversa de amigo me levara a fazer a descoberta, que para mim valia mais do que qualquer teoria científica. Pensava agora, no pequeno trecho do livro, que dizia com toda a justeza: “o sono compartilhado é mesmo o corpo de delito do amor”.

2 comentários:

  1. ...
    (só pra registrar meu silêncio compartilhadíssimo e mais nada)

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  2. Todo Thomas, todo insustentável - leve e todo,ao mesmo tempo submetido ao fardo que é o sono compartilhado com a criança que fora trazida na cesta,pra ele e que lhe segura as mãos,ao dormir,como se quisesse poteção,Tereza. Aquele sono que a difere das outras mulheres. Me fizeste lembrar das viagens do Kundera. Adoro esse estilo,amor e boemia. Teu texto ficou meio Caio Fernando,meio Kundera. Meus dois amores platônicos. Gostei muito,David. Continua! Tens talento. Emocionas.

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