Moça à Janela - Salvador Dalí
Quando a vi, ela estava ali, parada, em frente ao espelho. Ficava assim, mirando-se eternamente, sem admirar o que via, procurando algo sem saber o que queria. Esfregava as mãos contra a própria face, desistia. Seu próprio rosto era, naquele momento, um absurdo em forma de rosto. Novas rugas, peso, marcas, estava disforme, desconforme o traço que moldava para si mesma sob o peso pungente de sua dor. A menina olhava o espelho e não se via. Ou, quem sabe, encontrava algo indizível, que não queria admitir para si mesma, uma imagem translúcida, que num sem-tempo, tornava-se assustadoramente verdadeira.
Quantos anos ela tinha? 60, 50, 20? Que importava? O tempo passava para todas elas, para todas as mulheres que moravam e habitavam dentro da menina que agora cultuava o espelho, como quem alimenta um monstro insaciável. Sustentava-se com as duas mãos sobre a pia, concentrando-se em algo que o reflexo deixava sempre escapar. Vez por outra, soprava suas mechas, como quem quisesse dizer estupefata: “não, não está nada bom”, era sua forma de dizer que estava cansada. E então se virava de lado contando gorduras e apalpando os seios, na tentativa de quem sabe levantá-los um pouco mais. Tempo, gravidade, saco, bucho, tudo a puxava para baixo, era a melancolia do indizível, sobre a qual nem mesmo o luto ousava repousar. Ficava assim mesmo, ferida aberta, peito aberto, aberto o tempo que ao contrário dos pensamentos que iam e vinham, apenas se ia, cada vez para mais longe, levando consigo o resto de familiaridade que a menina encontrava diante de si enquanto alimentava o monstro do espelho.
Ela sentia um peso gigante derramar sobre si. Uma represa rompendo, água caindo, dedos se movendo, olhos se movendo, algo se movendo impunemente, como que em sua direção. Seus olhos duros não deixavam que escorressem as lágrimas. Eram duas pedras que não se permitiam furar, deixando vazar apenas a dor que carregava, uma dorzinha seca, a dor de não sentir que seu próprio corpo, mesmo quando estava completamente a sós com ele, era realmente seu. Não se podia dizer que era por causa de minha presença. Na verdade, ela jamais me notara. Mas eu, mesmo assim, ficava ali, por horas e horas, contando seus suspiros e ares de pesar, como quem acompanha os passos da amada pela noite, e vela pelo sono respirando cada um dos sonhos que ela tinha para contar. Quisera eu dar-lhe ao menos um beijo, a conduzir na noite e mostrar-lhe o quanto ela era bela e o mundo somente uma ilusão. Mas o espelho era ainda mais forte, ele sempre me vencia, o espelho a massacrava e não havia nada que eu pudesse fazer. Ela então culpava sua sina e eu pensava que a menina que eu tanto amava não queria mais viver. Ela queria ver derramar o sangue, seu corpo parado, o sangue correndo, o movimento esplêndido da vida que se esgota passo por passo, gota por gota. Se ao menos eu pudesse tocá-la! Mas ela queria ver a vida esvair-se, da mesma forma que via as folhas mortas caindo lentamente do lado de fora de sua janela. Morreu de tão bela, gravaria eu seu epitáfio, roçando o gosto da terra, procurando sua vida. Mas beleza era uma palavra maldita agora, uma invenção que vinha de fora e não a deixava mais dormir.
De onde viram esses olhos sobre o corpo? Essa pressão irresistível? Essa cobrança que fazia sobre si mesma, sabendo que não a desejava e que jamais iria cumprir? Ela agora tentava esconder o corpo com braços e mãos, tapando o ventre, o sexo, ocultando-os do mundo que cobrava, segundo ela mesma dizia, um corpo que não era o seu. Enrolou-se na toalha lentamente, como quem se enrola numa casca de fruta madura. Tentava sentir seu próprio cheiro. Lembrava-se então das outras mulheres, mais magras, mais belas e atrevidas e pensava por que raios não poderia ser como elas. Então achava rugas, marcas, toiços, tudo, traços borrados de seu retrato, pintado por um artista sonso que fora embora, sem jamais concluir seu trabalho.
Ela sabia que queria ser só dela, ter um tempo consigo mesma, fugir para um país distante ou quem sabe arranjar alguém que não ligasse para tais coisas. Mas será que ela mesma sabia quem realmente era? Por que não podia ser como sonhara? Queria romper com o mundo. Queria o mundo só para ela. Queria se reconciliar com o mundo. Amava e odiava a um só tempo, turbilhão alado, anjo caído. Bruxa! Era uma bruxa. Dobrava a cabeça baixando o os olhos e, logo, logo era uma criança pedindo colo! Fazia poses e rebolava na frente do espelho, passava a língua levemente pelos lábios, agora, ela era gostosa. Um segundo depois, desistia de tudo, bagunçava os cabelos e jogava-se no chão do banheiro. Já não era mais nada, era apenas a sensação do frio do granito pairando sobre o ar. Era rosto contra o chão, martelo contra a cabeça, pensamentos que voavam tentando se libertar. “Sensações não têm corpo, penetram na alma das mulheres e reinam soberanas sobre a razão que se encolhe tímida num canto diante da força do sentimento bruto”. Como ela queria usar mais a razão às vezes! E quando pensava nessas coisas, batia uma certeza, queria ser suas próprias sensações. Sentimento sem corpo, força sem culpa, leveza forte sobre a alma alheia. Sua raiva, sua inveja, sua ira, seu gozo interrompido, sua marca de batom. Suas lágrimas... Onde estariam elas agora? E, de repente, aí estavam elas. Punha-se a chorar.
Ouvia-se um barulho vindo lá de fora. Tanto pior, o mundo lá fora era a vida que passava, o tempo que batia com força, martelando em sua cabeça, fazendo aparecer mais marcas sobre o corpo estranho, fazendo com que ela mesma se marcasse ainda mais, a ferro, fogo, brasa ou com suas próprias unhas, num rompante violento de quem tenta livrar-se definitivamente de um corpo que não lhe pertence mais. Pobre menina! Sua janela era como um véu que jamais tirava, através do qual e somente do qual ela observava o mundo de fora, numa penumbra sempre acinzentada. Por um segundo, ela pensava em acabar com tudo! Mas não. Havia uma pulsão estranha que a puxava para a vida, vida-sobre-morte, uma distância indizível, um eterno flertar com o abismo. Entregava seu corpo mais uma vez, produzia-se, dançava, transava, eventualmente, gozava, senão fingia, mas não queria mais fingir. Ouvia um barulho, um barulho diferente, algo acontecia, e então moveu seus olhos de pedra do espelho à janela, para assim poder conferir através do véu o que acontecia.
Uma multidão passava agora em sua rua. Em sua maioria, eram mulheres que cantavam e marchavam, descompassadamente, num misto de raiva e alegria, paz e violência com traços divinos, uma linguagem que ela, folha morta, traduzia apenas como vida. Ela via vida. Lenços laranjados, bandeiras cor-lilás, tambores que rufavam, mãos que aplaudiam. A folha amarelada que já se ia caindo, parou sobre o ar, parou para ver a vida. Gostou. Queria viver também. Aquelas mulheres protestavam contra tudo, para umas era a violência, para outras o preconceito e havia ainda aquelas que nem se sentiam tão oprimidas assim, mas só vinham por causa da cerveja. A menina sorriu e, por um instante, achou que talvez ela e o tempo, que tantas vezes se cruzaram e se bateram, podiam afinal ser amigos. Sentia ali, que, de alguma forma, também fazia parte desse tempo.
Uma energia até então desconhecida, tomou de assalto o seu peito. Era um desejo que não tinha nome, uma força indomável, que lhe percorria o corpo e fazia-lhe tremer os lábios. Quem um dia já sentiu esse desejo, essa força, de modo tão forte e irresistível, não pode jamais comunicá-lo, mas transpira-o por todos os poros. Assim ficou a menina. Ela respirou lentamente, tomou fôlego e foi se arrumar. Pouco tempo depois, displicentemente, desceu apressada e se juntou à multidão. No meio do caminho, notou que muitas carregavam faixas, com dizeres e protestos, e quis dizer algo também. Ela que não entendia nada de movimentos e odiava política, de repente, sabia que, sim, tinha algo a dizer. Não sabia nem se era importante, talvez até rissem dela. Que rissem! Agora era fera selvagem, potente, indomável. Seria alegria fugaz de carnaval, catarse, utopia, o começo de uma nova vida ou simples explosão que terminaria, como tantas vezes, na depressão do dia seguinte? Ela não sabia dizer. A menina gritava, chorava e xingava os carros que passavam. Entre mensagens militantes, frases fortes e rompantes, ela também carregava um pequeno cartaz que acabara de confeccionar, ela mesma, pelas próprias mãos. O que ela queria dizer com aquilo, eu não fazia a menor idéia. “Espera menina!”, gritava eu. Mas estava ficando para trás. Ver a menina naquele alvoroço era como vê-la em uma plataforma de estação, pegando um trem que eu sabia bem nunca mais voltar. Já dizia alguém que o mesmo trem da chegada é o trem da partida. Aquele partia, sem nada me trazer de volta. Depois de tantos anos via, enfim, a menina partir de mim. As palavras que ela carregava em seu cartaz, eram como que palavras de adeus, não havia mais espaço para mim na vida dela. Não sabia dizer o que sentia. Não estava feliz, nem triste, talvez ternamente desconcertado. Mas ao ler aquele cartaz, senti que penetrei como nunca naquele pequeno e apertado coração, coração que perseguira por todos estes anos, sem nunca achar vestígio. Em meio à Multidão, ele finalmente veio à tona, como se fosse esculpido com o martelo da luta, ou revelado com a ternura de um grito. Jamais saberei o que dizer, a não ser que, naquele momento, cheguei a tocar a sua alma. A força daquelas palavras me dizia, com a resignação de um Carlitos Vagabundo, que eu não tivesse medo e então essa mesma força tomava minhas mãos em pantomima e me conduzia tirando-me os pés desbotados do chão. Ela me levava lentamente à alma selvagem que agora surgia como a lótus da lama de tristeza, que por todos esses anos a menina remoía dentro de si. Seria o adubo da vida que se faz cortejando a própria morte? O pequeno cartaz, pintado em tinta verde e rosa, já se escorrendo, dizia apenas assim: “deixe-me envelhecer em paz”.
David Carneiro, Agosto de 2011
Incrível! meio Tereza, do Insustentável! Esse livro te deixou muita inspiração,eu acho.
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