Felipe de Campos Ribeiro em 07/02/2012
Segunda década do século XXI, Belém, seis de fevereiro, duas e tantas da madrugada: fui andar. Para onde? Fui andar. Atormentado pela noite de insônia – pelas angústias das incertezas do futuro, da não realização dos sonhos, da vida acomodada, da solidão – um medroso vai à rua; simplesmente para andar, sentir o vento suave da noite, olhar a luzes, a calmaria, uns raros carros (que, volta e meia, vêm trazendo ao longe seus ruídos que vão paulatinamente aumentando de volume e paulatinamente diminuindo).
De fora – apenas com minha chave no bolso, e mais nada (nem mesmo um lenço ou um documento)! - cuidadosamente bati a porta do apartamento. Tomei o elevador. Desci. Atravessei a portaria acenando gentilmente (porém, ao mesmo tempo, compenetradamente) ao porteiro (meu bom amigo violonista Nelson). Abri a porta de vidro do meu prédio antigo (que, porém, se esmera ao máximo –com reformas – para ser moderno) e pisei na rua. Eis, lá, eu, em pé: na José Malcher, em frente ao Hotel Regente, momentaneamente parado (com uma mão ainda tocando a maçaneta externa de um prédio provincianamente velho/novo e dando rapidamente uma olhada nas estrelas do céu) por uns cinco segundos. Então, parti em direção à praça.
Desde criança, sempre fui acossado por um misterioso encantamento pela calmaria e densidade da noite. Porém, sempre que comentei - no inevitável círculo pequeno burguês em que vivo – sobre minha fascinação em caminhar noite adentro, ouvi vozes amedrontadas tecendo as mesmas previsíveis recomendações: “olha... cuidado! Sabes como está a violência e esses bandidos por aí..”; ou até, simplesmente “tu és é doido de fazer isso, menino!”. Minha mente nunca se deixou muito levar por tais repetições de pessoas que, provavelmente, em sua maioria, nunca tiverem experiência semelhante. Tenho certeza de que suas intenções são as melhores, porém, meu espírito tem um quê de estrangeiro ante a tal círculo. “Estrangeiro”: eis a melhor metáfora que sou capaz de sinteticamente materializar em palavra para exprimir um turbilhão tão infinito de “estrangeirismo” inominável que carrego. O que importa é que nunca tive medo de enfrentar a noite; as ruas de Belém; os pequenos acontecimentos - de uma certa rotina da noite sub-mundana desta cidade - que, se ninguém passasse e os visse, se desvaneceriam para sempre no universo. Sempre fui convicto de que, um homem que sai andando de chinelos, uma bermuda e uma blusa meio velha em plena madrugada belenense, dificilmente será acometido por algum perigo. Quem quiser me julgue louco.
Larguei a maçaneta, olhei para frente e saí andando. A madrugada estava silenciosa. Os raros ruídos dos carros iam chegando e se afastando. As luzes todas acesas, a rua deserta. Então, aos pouquinhos, fui verificando que era deserta apenas para os desatentos. Em frente a uma grande loja de automóveis (Honda Veículos), encostado entre o chão e as grades da frente da mesma, embrulhado em papelões, dormia um homem; um homem negro e bastante magro (foi tudo o que consegui ver). Uma grande, imponente e luxuosa academia de ginástica (Pelé) dormia do outro lado da rua, com suas luzes todas apagadas. No entanto, reparando bem, só quem não dormia eram seus hercúleos seguranças (não sei bem se propriamente hercúleos ou se, na verdade, meio gordos). Eram três desses homens que estavam lá: dois sentados em cadeiras e um em pé, com o glúteo meio gordo encostado num corrimão. Antes de minha presença, parecia-me que conversavam despojadamente. Na medida em que fui aproximando-me e cruzando com eles, pararam por um momento e ficaram a me observar. Também olhei para eles. Eles me olhavam e, eu, andando, olhava para eles. Quando passei, parece que tudo voltou ao estado de antes (para ambas as partes). À frente, ao longe, das luzes da praça, vinha em minha direção um solitário homem pedalando sua bicicleta bem rente à margem do asfalto. Na medida em que se aproximava, me era mais nítido: tratava-se um senhor moreno de cabelos brancos, aparência humilde (chinelos, calça de pano, blusa quadriculada de botões de mangas curtas) e pedalando uma bicicleta toda incrementada. Esta era preparada para vender lanches: café, pães e tapiocas (foi o que me pareceu). Quando ele, à pedaladas lentas, cruzou comigo, trocamos “Boa noite!”. Ele passou. Alguns segundos depois paralisei-me maravilhando ante ao deslumbrante Palacete Bolonha, situado ao outro lado da pista. Para ser mais exato, o palacete situa-se em uma esquina da José Malcher com outra rua bem estreita, preservada ainda em estilo antigo: toda em pedras. Uma curiosidade lancinante fustigou-me para esta rua. Era tão próxima de minha residência! Eu já havia passado por ela, porém nunca a havia explorado até o fim. Como isto era possível? Não tive dúvidas: atravessei a rua em sua direção. Durante a travessia, olhei em direção a todo o trajeto que já havia feito. O humilde senhor da bicicleta estava parado junto aos seguranças gordinhos da academia. Vendia-os cafés, pães e tapiocas (a diretoria da academia bem que poderia disponibilizar seus serviços aos seus seguranças!).
Adentrei a rua estreita. Ela era um pouco mais escura, porém lindíssima! Repleta de casas bonitas, pessoas morando. Logo à entrada desta vila, ao lado direito, há um prédio largo e alto de quatro andares que funciona como um albergue. “Amazon International Hostel” estava escrito em uma placa. Eu nunca suporia a existência de tal estabelecimento bem ali, um vizinho à minha cara. No terceiro andar acontecia uma farrinha: vozes falavam em inglês, um violão tocava qualquer música ruim e uma voz não muito afinada – talvez um pouco bêbada – cantava igualmente ruim. Por algum motivo, eu sorri. Sorri bastante. Aquela pequena bobagem era muito engraçada ao meu espírito curioso e explorador daquele momento, sabe-se lá por que. Fui passando e cheguei ao “fim da vila”.
Descobri um pouco mais de minha tão bela e tão feia cidade. Ao final da rua estreita em que eu estava, dobrando para o lado esquerdo, havia uma enorme continuação. A pequena primeira reta em que eu entrara – a do Palacete - terminava bem nos fundos de um prédio (prédio este que tem sua frente voltada para a rua Beijamin Constant). Ao lado direito deste fim de linha, uma rua que saia diretamente também à Beijamin Constant. Tudo isso eu já sabia. Porém, neste mesmo fim de linha, ao olhar para o lado esquerdo, me aturdi. Há ali uma vila enorme com varias casas, todas bastante grandes. Sem hesitar, rumei para a esquerda.
Carros importados estacionados nas grandes garagens me impressionaram naquela pequena vila bem ao centro da cidade (onde uma calmaria soberana reinava). Era como se aquele poderoso império todo (econômico) estivesse literalmente escondido, bem atrás do Palacete Bolonha (não é curioso?). Eu estava ali. Quem era eu? Ali, àquela hora? De repente, em minha intuição foucaultiana, logo atinei: “devo estar sendo vigiado neste exato momento!”. Acertei na mosca, praticamente como que em uma premunição: ouvi um assovio vindo lá do fim a primeira rua (de onde eu tinha vindo). Olhei para trás. Um guarda noturno vestido de perto segurava um cassetete e me olhava. Ele estava um pouco longe, mas parece que me olhava feio (no mínimo com séria desconfiança). Senti-me avassaladoramente indignado em ser, por aquele brutamonte, convidado ao constrangimento simplesmente por estar andando livremente pelas ruas da minha cidade. Aquilo seria uma rua particular? Seus poderosos moradores gostariam de viver - “na marra” - protegidos das mazelas nas quais todos nós vivemos em Belém? Não aceitei! Destemidamente, fiz, com uma mão, um sinal ao brutamonte; um sinal para que ele esperasse, pois eu iria continuar andando. Virei de costas a ele e continuei na mesma direção de antes. Cheguei ao final da vila (sim, desta vez era o final mesmo, não havia saída). Entre as grandes e luxuosas casas que ali existem, há no final da vila, uma ainda maior e mais luxuosa (que se destaca arrogantemente ante as primeiras): uma mansão, com lindo jardim na entrada e um alto portão preto duplo. Em ambas as abas do portão, duas grandes letras talhadas em maiúsculo, cor dourada e em fonte gráfica exageradamente estilizada pomposamente: RM. Eis minha mais indignante surpresa. Ali entendi tudo. Entendi quem provavelmente seriam os patrões daquele pobre guarda. Aquela abordagem era mesmo bem característica da “política” de seus prováveis patrões. Me virei novamente ao guarda brutamonte. Ele estava parado do mesmo jeito de antes (cassetete na mão), porém dessa vez, mais desconfiado e impaciente do que nunca. Fiquei plantado por alguns segundos em frente à grande mansão olhando também para ele, no afã de provocá-lo um pouco. Por um estranho e irracional prazer, deixei se arrolar este momento muito tenso. Não sei se faria isto novamente, mas naquele instante não temi a nada, apenas gozei. De repente, comecei a percorrer o caminho de volta. Lá estava eu andando em direção ao brutamonte. Ele, intacto. A medida em que me aproximava, eu o olhava nos olhos inquebrantavelmente. Ele fez o mesmo, e no tenso trajeto de volta, não houve palavra.
Apenas quando estávamos cerca de sete metros um do outro, falei com a voz firme: “não se preocupe, amigo! Moro ali no prédio e só to andando por aqui mesmo”.
Ele, ainda desconfiado, respondeu: ”não tem saída pra aí não”.
“eu sei. Eu só tava conhecendo mesmo aqui”.
Foi quando ele rispidamente retrucou tornando claro seu poderio: “conhecendo?” – e sorriu sutilmente – “Te manda logo, rapá! To te olhando daqui!”.
Ignorei sua resposta imponente e, como se nada tivesse acontecido, perguntei em adendo: “amigo, de quem é aquele casarão lá do final?”.
Provavelmente ele ficou impressionado com isso (lhe seria, no mínimo, incomum), porém não demonstrou isso. Apenas lançou seu ultimato: “borá! Passa, rapaz!”.
E eu finalmente me despedi: “seu guarda, não vou fazer mau pra ninguém. sou só um cidadão andando na rua, viu? Mas vou ‘passar’ que nem um cachorro pra não apanhar”.
O brutamonte então, como se em um segundo passasse a confiar em mim, me surpreendeu: “não leva a mal aí não... é que agente tem que proteger a vila”.
Dessa vez, foi eu que, embora bastante surpreendido, não transpareci. Já de costas a ele, sem nem mesmo olhá-lo mais, finalizei definitivamente: “e a vila, te protege?”.
Saindo dali ainda andei bastante. Peguei a Benjamin e rumei até a esquina do Midori, dobrei à esquerda na rua desta esquina (uma rua tão pouco usada que nem seu nome lembro) em direção à praça. Chegando nesta, circulei um pouco pelas luzes e finalmente sentei em um banco já no corredor das mangueiras, próximo ao sempre saudoso Bar do Parque. Por mais de hora, pus-me a olhar o movimento (da praça para a Presidente Vargas, o movimento é sem duvidas maior): taxistas, prostitutas, mendigos, dois meninos de rua, um “cachorro quente” aberto. Em uma pessoal paz filosófica ali fiquei - em baixo de grandes mangueiras, de grandes histórias, de grande cultura, de grandes desigualdades, de grandes injustiças – a contemplar a cidade que ia amanhecendo e acordando aos pouquinhos.