quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

SOBRE O ELOGIO DE PLATÃO À DEMOCRACIA: OU SOBRE A AUTORIDADE FILOSÓFICA NA FEIRA DEMOCRÁTICA

Ricardo Evandro Santos Martins.[1]


         
Na elaboração do conceito de justiça, Platão procurou estabelecer a cidade ideal, que seria governada pelos reis-filósofos, únicos capazes de dirigir a Cidade justa. Com isto, é comum dizer que Platão foi um duro e irremediável crítico da democracia, isto é, do governo da maioria, maioria que não tem a Sabedoria como virtude predominantemente.  Daí é muito difícil dissociar sua metafísica baseada na Tese dos mundos da sua filosofia sobre o Justo e sobre o político. Platão via o mundo democrático como aquele onde se relativiza o mundo ideal e onde se corrompe o poder a caminho da tirania e distante do governo ideal dos reis-filósofos.
Então venho colocar uma provocação aqui. Provocação já feita por scholars como Altman e Roochnik. Destaco uma passagem na “República” em que Platão, mesmo em meio de acusações do risco da demagogia e do surgimento da tirania no governo democrático,  por outro lado, também parece fazer um elogio ao modelo da democracia. Na passagem n. 557d, por meio da voz de Sócrates, quando fala das características do homem democrático e das características da cidade democrática, assim diz:
“Pois graças à liberdade reinante, ela contém todas as Constituições. Se alguém se dispusesse a fundar uma cidade, como o fazemos neste momento, bastaria dirigir-se a uma comunidade democrática para escolher um modelo do seu gosto, à maneira de quem entrasse num bazar de constituições para remexe-lo e organizar a nova sociedade segundo a amostra preferida.”. (Tradução de Carlos Alberto Nunes, ed. UFPA).
Dessa passagem podemos interpretar que Platão, apesar de criticar a democracia, por ser um modelo degenerado do modelo ideal da Cidade justa, também parece ter ciência que a tarefa da elaboração filosófica sobre como seria uma Cidade onde a Justiça imperaria só poderia ser feita numa cidade democrática. Pois é na democracia onde há uma mínima liberdade de participação dos cidadãos, vistos como iguais, para se elaborar e se propor a Constituição de uma cidade que se prefere ou se entende por verdadeira.
Em resumo, na passagem citada da "República",  Platão nos diz que somente numa cidade democrática pode haver uma oferta de propostas de Constituições possíveis -- “(...) à maneira de quem entrasse num bazar de constituições para remexê-lo e organizar a nova sociedade segundo a amostra preferida. ”. A cidade democrática seria como um bazar, ou uma feira, como diz Sócrates, pelas diversas possibilidades de pensamento e de escolha de um modelo de cidade.
Portanto, afirmo mais uma vez o elogio de Platão à democracia. Pois basta lembrarmos que é na democracia ateniense, mesmo que já um pouco distante do nosso modelo contemporâneo de democracia, é que a dialética provocada por Sócrates sobre a Cidade justa, sobre o Belo e o Verdadeiro ocorre. Logo, a democracia não impede ou tampouco enfraquece a busca da Verdade. Mas reforça tal possibilidade. E mais, podemos afirmar que a democracia é o melhor espaço  para se reconhecer uma autoridade em um determinando assunto ou função, como a do filósofo, enquanto autoridade na tarefa de distinguir e definir os entes, procurando pelo Belo, Justo e o Verdadeiro.
Sobre  o tema da autoridade, na passagem n. 284 de "Verdade e Método", Gadamer reabilita  o seu valor -- perdido desde a desconfiança de Descartes sobre todo tipo de preconceito e sobre pretensas autoridades da Verdade  -- quando diz que a autoridade de alguém em um assunto ou em uma função possui fundamento em um reconhecimento, e não em um ato de submissão.
A partir de Gadamer, acrescentamos ainda que somente em uma sociedade onde as pessoas são consideradas como livres e tratadas com igual consideração é que tal reconhecimento poderia ser genuinamente livre. Assim, a não ser que o projeto de uma Cidade ideal, que é livre de injustiças e composto por cidadãos virtuosos, pudesse ser concretizável no mundo sensível,  coisa que o Platão tardio, do "Político", já não mais aceitava como possibilidade viável neste mundo corruptível, fora do modelo da igualdade democrática a autoridade filosófica corre o risco de ser autoritária.
Gadamer nos diz que o reconhecimento da autoridade de alguém não é um ato sem crítica. É muito mais um ato de liberdade. Assim, se a autoridade de alguém, como a autoridade filosófica, advém de um reconhecimento, e não de uma titulação hereditária ou classista, ou de um privilégio concedido por titulação institucional, tampouco de uma imposição de qualquer tipo, entendemos que só numa cidade que considera seus cidadãos livres, onde o poder é dividido minimamente entre iguais, mesmo que por representatividade político-partidária,  é que tal ato de reconhecimento pode ser autêntico.
O tempo em que vivemos de acirramento dos debates políticos e de polarização ideológica é preciso ser visto com cuidado para que possamos manter e fomentar o espaço mínimo daquilo que pode ser considerado como componente da natureza da Filosofia, que é  diálogo, amistoso, livre e plural. É típico da democracia e é até desejável neste mesmo mundo que possamos circular os argumentos, contrapondo-os, ainda que  o acordo ou consenso não ocorra e impere a pluralidade de ideais. A democracia não é somente o lugar dos sofistas, enquanto mestres na arte da persuasão e da relativização da Verdade.
Em outras palavras, a democracia é a possibilidade real para que haja circulação de argumentos, refutação (“elenchós”) enquanto método da busca da Verdade. Na "Carta VII", Platão vem nos falar sobre a necessidade da "segunda navegação", que é a tarefa de se encontrar a Verdade por meio da pergunta-resposta que o diálogo refutatório nos exige. A especulação filosófica não pode ser compreendida como mera tarefa de rememoração ("anamsese") do tempo em que nossas almas conviviam com as formas puras. A busca pela Verdade é também tarefa de "fricção" de argumentos via diálogo, procurando definir os entes, ainda que o diálogo seja consigo mesmo pelo pensamento, para que o fogo do conhecimento aconteça. 
Por isso, a tarefa do filósofo, do cientista político, do sociólogo, do historiador e do jurista neste tempo de crise política e de instabilidade econômica deve ser a de defender este espaço democrático de circulação de ideias, ainda que se reproduza a posição platônica que prefere o modelo político pautado no governo da elite dos rei-filósofos, seja como projeto que se acredite realizável, seja como mero mundo ideal de função reguladora do nosso mundo sensível, deveniente e finito. Portanto, quando se vê uma crise como a que vivemos no Brasil, estamos diante da chance de reafirmar a democracia como condição de possibilidade da própria Filosofia enquanto busca da Verdade, ainda que tal exercício do filosofar prefira um modelo de Constituição contrário à própria democracia, tamanha é a característica "feirante" deste modelo político, como já afirmara Sócrates na "República".  

REFERÊNCIAS

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma Hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

PLATÃO. A República. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.

______. Carta VII. Disponível em: http://platon.hyperlogos.info/Platon-Carta-VII. Acesso em: maio de 2014




[1] Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Bolsista CAPES-CNPq. Professor de História do Direito e de Introdução ao Estudo do Direito no Centro Universitário do Pará – CESUPA. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Direitos Humanos, Ética e Hermenêutica”. Co-coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Humanismo latino e fundamentação dos Direitos Humanos”. Membro do GT Filosofia Hermenêutica (ANPOF).

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