Ao lado, duas crianças manuseavam hábil e freneticamente uma espécie de Ipod tamanho gigante de última geração. Não sei o nome. É o ultimo lançamento. A novidade do momento. Alguns de vocês hão de sabê-lo.
Mais a frente, funcionários e vendedores. Todos com o mesmo uniforme. Apressados, atendiam telefones que tocavam sem parar; demonstravam aparelhos a clientes - com aquele empenho e obstinação inquebrantáveis característicos dos vendedores – no afã inexorável (que, aliás, deve custar-lhes uma bela fadiga quando tudo acaba) de convencê-los de que estão, sem dúvida alguma, fazendo a melhor escolha de suas vidas. Uma vendedora em específico se diferenciava dos demais. Esta chamou a atenção de meus olhos. Diferindo-se de todos (menos de mim), ela também estava parada e contemplando o nada com o olhar. Era como se tivesse desistido daquela correria e também tivesse percebido a loucura daquilo tudo, indo além em seus pensamentos. Um funcionário vestido em outro uniforme (mas também uniformizado!) – uma calça de linho e uma camisa de mangas compridas, mais social –, exibindo claramente aquela imagem que impunha sua superioridade ante aos outros funcionários, passou ao lado desta mulher peculiar e, com a tez da face contraída e a testa franzida, disse-lhe algo ao pé do ouvido. E ela, como que acordando de um sonho, voltou a se movimentar (apesar de que ainda tímida e vagarosamente).
Ao meu outro lado, duas mulheres. Clientes exigentes, pareciam. Uma reclamava qualquer coisa falando sozinha, talvez a demora em a chamarem pelo numero da senha, ou talvez a má qualidade do serviço como um todo. A segunda mulher brigava com alguém pelo celular. Dizia: “agora não dá, fulano... estou aqui nesta porcaria desta TIM contestando uma conta que veio errada. Pra nos cobrar e nos roubar eles são craques!”.
Naquele momento só meu de observador viajante – “só meu” por se tratar do devaneio mais profundo durante o momento mais corriqueiro da vida cotidiana -, em que tais cenas aconteciam lenta e silenciosamente para mim, quase chorei. Perguntei-me sobre o sentido desta vida. Aquilo era viver? E eu, que estava a fazer naquele lugar tão estranho e sem sentido? Eu fui ali para comprar um celular. Já fazia muito tempo que eu não saia para fazer isto, notei.
Tive o antigo aparelho celular sorrateiramente subtraído de meu bolso enquanto me debatia para livrar-me de um daqueles conturbados emaranhados de gente que se formam de vez enquanto nas noites de trasladação do Círio de Nazaré. O celular já era velinho. Era um senhorzinho humilde e modesto, de aparência bastante simples. Já conseguia me constranger um pouco diante dos imponentes, viris e pós-modernos que já apareciam freqüentemente nas mãos dos outros.
Constrangimento? Não seria um termo muito forte? Não é um tanto dramático de minha parte? Que seja. Quem foge à regra dos valores dominantes, naturalmente, tende à marginalidade. Talvez não seja nem um pouco difícil acabar se tornando um marginal na sociedade em que vivemos.
“Por causa de um celular alguém se sente deslocado? Aff... é muito sentimental!”. Será que refleti apenas sobre um celular quando, enfileirado e querendo um celular novo, me aturdi com a vida naquele fim de tarde? Creio que quem ouse não acompanhar o marasmo das novidades do consumo – do gozo inalcançável -, quem não ingressa neste espaço virtual (virtual porque, concretamente, sabemos que apenas muito poucos gozarão de tais gozos), parece estar fadado a uma espécie de anacronismo e, portanto, de marginalidade.
Voltado à loja: de repente, eu estava à frente de um enorme e extenso balcão de vidro, no qual havia dezenas e dezenas dos celulares mais sofisticados à exposição. Os mais diversos modelos e cores, todos brilhando e repletos de botões (tais como teclados de computador em miniatura). Precisava escolher um. Como? Aquilo era um bombardeio de estímulos, um mar de possibilidades. Era um convite a me deixar ansioso, a me deixar ouriçado olhando tudo e a não saber escolher. Eu ficaria agitado bisbilhotando a tudo – de aparelho em aparelho, apertando o maior numero de botões possível, conhecendo o maior numero de funções e aplicativos possíveis – e no final não saberia escolher, com uma sensação de vazio... de que não vi tudo... de que não aproveitei todas as possibilidades que esta vida das “liberdades” poderia me oferecer.
“Escolha” e “vazio”: palavras muito atuais[1]. Parece-me que uma das nossas grandes dificuldades neste novo mundo - que “nos oferece” infinitas possibilidades de prazer - é a de renunciar. A grande dificuldade que sentimos é a de aceitar as perdas, a de aceitar que a vida é marcada pela incompletude (incompletude, que nossos antepassados, em condições materiais mais precárias, sabiam lidar melhor). Seremos eternamente faltosos. A morte (no seu sentido amplo) não nos escapará. Ter a sensação de que estamos perdendo algo parece mais terrificante do que nunca. A sensação estranha e familiar de que tivemos algo que foi para sempre perdido sempre nos perseguiu perenemente (e sempre nos perseguirá). Porém, hoje nos munimos de um monumental arsenal de armamentos efêmeros para completar o que(?) está faltando e assim aliviar nosso psiquismo: medicamentos (para tudo), auto-ajuda, entretenimentos, pessoas, sexo, art pop, tatuagens, cirurgias plásticas, cinema (aqueles que nos dão “tudo mastigado”), celulares. É consumindo tudo isso e muito mais – objetos que se desvanecerão rapidamente (por isso são efêmeros) - que temos procurado desesperadamente tapar esta espécie de buraco que nos constitui. Por serem passageiros – aliviarem passageiramente nosso mal estar – precisarão ser substituídos rapidamente. O Capital agradece!
Se não pararmos para nos perguntar sobre o nosso mal estar e produzir sentidos mais efetivos para eles, permaneceremos como marionetes, escravos da lógica do consumo, no qual as marcas maiores em nossas subjetividades são a ansiedade, a violência e, principalmente, o vazio existencial. Não nos damos conta de que apenas ficarmos dizendo “Estamos no século da depressão, vamos procurar levar uma vida mais saudável” é algo um tanto vago (para não dizer frívolo e patético). Este clamor por uma vida mais saudável parece apenas esperar que a indústria psicofarmacológica trabalhe dobrado e nos ofereça mais remedinhos que nos deixem dopados e calminhos para continuarmos sem refletir sobre nossos males, nossas perdas, nossa sociedade, nossa vida.
Naquele momento, na loja, sufocado, oprimido e aflito – em meio aquele frenesi; aquela multidão; aquelas luzes todas; aquelas pessoas, que num balanço geral, são mais carentes e desalentadas do que felizes (por mais que se movimentem muito) – eu precisei filosofar. Eu precisei parar e pensar algo para além do que eu via. Pensei nessas bobagens que aqui estão escritas.
Também sou um sujeito dividido. Não estou fora deste mundo. Divido-me entre dançar conforme a música cantada pelas leis perversas que regem este mundo - desejando seus objetos sedutores de consumo – como sempre me ensinou meu Pai; ou, por outro lado, derrubar meu Pai, revolucionando esta história, perseverando nesta caminhada mais árdua de revoltar-se e inventar o futuro. Aos que, como eu, revoltaram-se contra seus pais, creio que um primeiro passo é reconhecer que eles – nossos pais - estão em nós mais do que imaginamos. Eles estão em nós independentemente da nossa vontade consciente. Gostaria que esses pais fossem entendidos não apenas em sua literalidade. Nossos pais: uma tradição moral que nos atravessa, que está arbitrariamente corporificada em nosso ser.
Na loja, estive em conflito por ser dividido. Em conflito porque, ali, olhando para os celulares, me deparei claramente com uma realidade difícil para mim (difícil de aceitar): tenho um fetiche pelos celulares. Eu os desejo. Possuí-los e exibi-los é simbólico, é obter um prazer extra-biológico. É fazer questão de mostrar que tenho um bem privilegiado; e que, portanto, possuo poder e luxuria sobre os outros seres humanos. Isto é horrível. Horrível para mim, um garoto tão correto e humanista. Culpei-me. E isto, só percebi agora: escrevendo, pensando. Naquele momento, apenas um mal estar. Desejando o símbolo do poder, eu parecia com o meu velho e odiado pai.
Ante a todas aquelas possibilidades expostas ao meu fetiche naquele enorme balcão de vidro, escolhi. Em pleno século XXI consegui renunciar (pelo menos, achei que havia conseguido) e escolhi. Comprei um celular de última geração: internet, redes sociais, 2G de memória, câmera de foto e vídeo, lanterna, jogos, aplicativos, entrada para dois ships, bluetoof, e muito mais.
Isto me matou. Violentei-me. Chegando em casa, não consegui viver paz olhando para aquele celular. Dois dias depois, voltei à loja e o devolvi. Eu não poderia me render assim, mesmo desejando. Desejar o proibido é o que mata. Voltei mais leve para casa, me dando um tempo - sem celular! - para escolher outro. Ainda não escolhi. Mas terei de escolher. Talvez não seja nem um tão humilde e nem um tão imponente, e sim um mediano: a minha cara. A cara de um sujeito dividido.
[1] Se meus interlocutores não quiserem aceitar com certa universalidade o que contarei agora, tomem minhas palavras a seguir apenas como bobas confissões pessoais, mesmo eu me exprimindo na primeira pessoa do plural.
Caro Felipe,
ResponderExcluirQuero manifestar minha alegria em tomar meu café da manhã neste sábado, juntamente com a leitura do teu texto (que só pude alcançar por conta do face), foi delicioso!
O meu, o nosso desamparo, creio, poderá ser bordejado assim, como você fez. Savoir Faire, com reflexão e poiésis é um caminho interessante, mas que paradoxalmente traz a forte marca de nosso pai grandão, nós só falamos "disso" porque o pai existe!
Veja vocês, que sente-se culpado em sair por aí exibindo um celular brilhante, talvez, não tenha sentido o mesmo mal-estar em, no face, exibir um texto tão interessante...
Isso me lembrou 'O Sistema dos Objetos', do Baudrillard. Objetos tão símbolos.
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