quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

SOBRE O ELOGIO DE PLATÃO À DEMOCRACIA: OU SOBRE A AUTORIDADE FILOSÓFICA NA FEIRA DEMOCRÁTICA

Ricardo Evandro Santos Martins.[1]


         
Na elaboração do conceito de justiça, Platão procurou estabelecer a cidade ideal, que seria governada pelos reis-filósofos, únicos capazes de dirigir a Cidade justa. Com isto, é comum dizer que Platão foi um duro e irremediável crítico da democracia, isto é, do governo da maioria, maioria que não tem a Sabedoria como virtude predominantemente.  Daí é muito difícil dissociar sua metafísica baseada na Tese dos mundos da sua filosofia sobre o Justo e sobre o político. Platão via o mundo democrático como aquele onde se relativiza o mundo ideal e onde se corrompe o poder a caminho da tirania e distante do governo ideal dos reis-filósofos.
Então venho colocar uma provocação aqui. Provocação já feita por scholars como Altman e Roochnik. Destaco uma passagem na “República” em que Platão, mesmo em meio de acusações do risco da demagogia e do surgimento da tirania no governo democrático,  por outro lado, também parece fazer um elogio ao modelo da democracia. Na passagem n. 557d, por meio da voz de Sócrates, quando fala das características do homem democrático e das características da cidade democrática, assim diz:
“Pois graças à liberdade reinante, ela contém todas as Constituições. Se alguém se dispusesse a fundar uma cidade, como o fazemos neste momento, bastaria dirigir-se a uma comunidade democrática para escolher um modelo do seu gosto, à maneira de quem entrasse num bazar de constituições para remexe-lo e organizar a nova sociedade segundo a amostra preferida.”. (Tradução de Carlos Alberto Nunes, ed. UFPA).
Dessa passagem podemos interpretar que Platão, apesar de criticar a democracia, por ser um modelo degenerado do modelo ideal da Cidade justa, também parece ter ciência que a tarefa da elaboração filosófica sobre como seria uma Cidade onde a Justiça imperaria só poderia ser feita numa cidade democrática. Pois é na democracia onde há uma mínima liberdade de participação dos cidadãos, vistos como iguais, para se elaborar e se propor a Constituição de uma cidade que se prefere ou se entende por verdadeira.
Em resumo, na passagem citada da "República",  Platão nos diz que somente numa cidade democrática pode haver uma oferta de propostas de Constituições possíveis -- “(...) à maneira de quem entrasse num bazar de constituições para remexê-lo e organizar a nova sociedade segundo a amostra preferida. ”. A cidade democrática seria como um bazar, ou uma feira, como diz Sócrates, pelas diversas possibilidades de pensamento e de escolha de um modelo de cidade.
Portanto, afirmo mais uma vez o elogio de Platão à democracia. Pois basta lembrarmos que é na democracia ateniense, mesmo que já um pouco distante do nosso modelo contemporâneo de democracia, é que a dialética provocada por Sócrates sobre a Cidade justa, sobre o Belo e o Verdadeiro ocorre. Logo, a democracia não impede ou tampouco enfraquece a busca da Verdade. Mas reforça tal possibilidade. E mais, podemos afirmar que a democracia é o melhor espaço  para se reconhecer uma autoridade em um determinando assunto ou função, como a do filósofo, enquanto autoridade na tarefa de distinguir e definir os entes, procurando pelo Belo, Justo e o Verdadeiro.
Sobre  o tema da autoridade, na passagem n. 284 de "Verdade e Método", Gadamer reabilita  o seu valor -- perdido desde a desconfiança de Descartes sobre todo tipo de preconceito e sobre pretensas autoridades da Verdade  -- quando diz que a autoridade de alguém em um assunto ou em uma função possui fundamento em um reconhecimento, e não em um ato de submissão.
A partir de Gadamer, acrescentamos ainda que somente em uma sociedade onde as pessoas são consideradas como livres e tratadas com igual consideração é que tal reconhecimento poderia ser genuinamente livre. Assim, a não ser que o projeto de uma Cidade ideal, que é livre de injustiças e composto por cidadãos virtuosos, pudesse ser concretizável no mundo sensível,  coisa que o Platão tardio, do "Político", já não mais aceitava como possibilidade viável neste mundo corruptível, fora do modelo da igualdade democrática a autoridade filosófica corre o risco de ser autoritária.
Gadamer nos diz que o reconhecimento da autoridade de alguém não é um ato sem crítica. É muito mais um ato de liberdade. Assim, se a autoridade de alguém, como a autoridade filosófica, advém de um reconhecimento, e não de uma titulação hereditária ou classista, ou de um privilégio concedido por titulação institucional, tampouco de uma imposição de qualquer tipo, entendemos que só numa cidade que considera seus cidadãos livres, onde o poder é dividido minimamente entre iguais, mesmo que por representatividade político-partidária,  é que tal ato de reconhecimento pode ser autêntico.
O tempo em que vivemos de acirramento dos debates políticos e de polarização ideológica é preciso ser visto com cuidado para que possamos manter e fomentar o espaço mínimo daquilo que pode ser considerado como componente da natureza da Filosofia, que é  diálogo, amistoso, livre e plural. É típico da democracia e é até desejável neste mesmo mundo que possamos circular os argumentos, contrapondo-os, ainda que  o acordo ou consenso não ocorra e impere a pluralidade de ideais. A democracia não é somente o lugar dos sofistas, enquanto mestres na arte da persuasão e da relativização da Verdade.
Em outras palavras, a democracia é a possibilidade real para que haja circulação de argumentos, refutação (“elenchós”) enquanto método da busca da Verdade. Na "Carta VII", Platão vem nos falar sobre a necessidade da "segunda navegação", que é a tarefa de se encontrar a Verdade por meio da pergunta-resposta que o diálogo refutatório nos exige. A especulação filosófica não pode ser compreendida como mera tarefa de rememoração ("anamsese") do tempo em que nossas almas conviviam com as formas puras. A busca pela Verdade é também tarefa de "fricção" de argumentos via diálogo, procurando definir os entes, ainda que o diálogo seja consigo mesmo pelo pensamento, para que o fogo do conhecimento aconteça. 
Por isso, a tarefa do filósofo, do cientista político, do sociólogo, do historiador e do jurista neste tempo de crise política e de instabilidade econômica deve ser a de defender este espaço democrático de circulação de ideias, ainda que se reproduza a posição platônica que prefere o modelo político pautado no governo da elite dos rei-filósofos, seja como projeto que se acredite realizável, seja como mero mundo ideal de função reguladora do nosso mundo sensível, deveniente e finito. Portanto, quando se vê uma crise como a que vivemos no Brasil, estamos diante da chance de reafirmar a democracia como condição de possibilidade da própria Filosofia enquanto busca da Verdade, ainda que tal exercício do filosofar prefira um modelo de Constituição contrário à própria democracia, tamanha é a característica "feirante" deste modelo político, como já afirmara Sócrates na "República".  

REFERÊNCIAS

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma Hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

PLATÃO. A República. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.

______. Carta VII. Disponível em: http://platon.hyperlogos.info/Platon-Carta-VII. Acesso em: maio de 2014




[1] Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Bolsista CAPES-CNPq. Professor de História do Direito e de Introdução ao Estudo do Direito no Centro Universitário do Pará – CESUPA. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Direitos Humanos, Ética e Hermenêutica”. Co-coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Humanismo latino e fundamentação dos Direitos Humanos”. Membro do GT Filosofia Hermenêutica (ANPOF).

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Fenomenologia da empatia

Nesta sexta que passou eu saí com Ricardo Dib Taxi para tomarmos vinho. Eu pretendo parar de beber complemente este ano -- mas vamos com calma, vinho pode. Foi uma conversa boa. Falamos sobre os afetos, sobre os erros que cometemos na vida e sobre como às vezes o tempo nos traz desaprendizado. Isto mesmo. Em vez de "sabedoria de vida", própria da idade avançando, encontramo-nos a desaprender...
Já no dia seguinte, sábado, acordei tarde. Acabei que não almoçei. Não sei bem. Acho que tinha perdido a fome -- coisa rara comigo. Sorte que o Adelvan Oliverio me mandara mensagem, chamando para conversar. Aproveitei para finalmente sair para comer alguma coisa. Nestes últimos meses meus finais de semana tem sido solitários e melancólicos -- ok, não só os finais de semana. Eduardo Neves diz para eu fazer disto um livro -- quem sabe não escrevo um desses com o Ricardo Silva. Mesmo assim topei o convite e saí de casa.
Na mesa, tomando vinho, Adelvan fala sobre Ricoeur e sobre como a narrativa, a memória e a identidade estão tão vinculadas. Na hora lembrei da dissertação do Gilberto Guimarães Filho sobre o caráter narrativo da Constituição de uma país e o impacto de um documento como este na identidade de uma nação. Bem, enquanto ele falava, ia parecendo que estávamos chegando a uma conclusão: parece que há uma chance contra o passado, este tempo irrepetível e irreparável.
Nós sabemos que o presente é o tempo da escolha, mesmo que por uma falsa sensação, pois o passado é essa armadura que carregamos na missão que é a vida -- para entender a metáfora basta lembrar do personagem de Robert DeNiro em "A missão", quando, depois de ter matado seu próprio irmão na disputa pelo amor de uma mulher, ele entra num processo de conversão e de noviciado à Ordem Jesuíta, tendo a tarefa de subir os morros brasileiros com sua pesada armadura espanhola.
A questão central não é o presente, tampouco o futuro. Pois é o passado que não está pelo menos aparentemente à mercê de nossa liberdade, de nossa ação ("práxis"), deliberação ("proiaresis") e produção ("poiésis"). Assim, uma vez que a viagem no tempo ainda parece ser físico-quanticamente impossível, como seria possível alterar o passado? E com isto transformaria o presente, abrindo novas possibilidades futuras? Impossível.
Será?
Conversando com Adelvan, seguindo Ricoeur, talvez haja uma chance. Uma chance contra o passado, sub-deus de Chronos -- "Ó, terrivel Tempo! " ("Ró deinós Chronós! "). Se a memória for mesmo plástica como dizia Freud, passível de seletividade, e se a memória for muito mais do que uma questão neuro-química, sendo em verdade uma narrativa do mito sobre quem nós somos, de nossa identidade, então temos uma saída.
A memória não seria apenas o modo de lembrarmos de que somos os mesmos entre os dias, horas e segundos. Ela tambem poderia ser este lugar que habita nosso inconsciente, como o "oceano" do planeta Solaris (Tarkovisky), que devolve nossas memórias materializadas, mas que também alcança um nível da consciência, passível de ser recontado. Narrado de novo. E se pudermos contar (por "poiésis") uma outra estória sobre a nossa história de vida, talvez tenhamos a chance de sermos uma outra pessoa. Uma chance de ganharmos uma nova identidade. E fazer dela alguém sem as "armaduras" sujas de sangue, próprias do passado, além de aberto para outras possibilidades imprevisíveis ou mesmo esperadas.
Assim, a esperança e a consolação de uma nova memória, de um novo "si mesmo", podem abrir caminho para o perdão de si -- este milagre de receber o excesso de amor de quem te perdoa, fruto da injustiça de receber o que não se merece, mas que mesmo assim se recebe, por amor. Aqui, será que o perdão, enquanto ato de amor, poderia ser um exemplo de "se dar o que não se tem para quem não quer" (Lacan), como me explicava Ernani Chaves neste domingo? Bem, ao menos o perdão teria uma versão própria: "dar o que se pensa ter muito para quem não merece".
Com este novo "Eu", poderia se chegar também, sempre com esperança, contrariando a melancolia, a saudade corrosiva do passado e o pessimismo quanto ao futuro, a um novo presente, quando o "si mesmo" pode encontrar o "outro", sendo-o. Uma "fenomenologia da empatia" então nasce aqui como o desafio mais difícil do ser humano: o de se tentar compreender o outro, colocando-se no seu lugar.
Tarefa difícil. Que desaprendi em algum momento quando deixei de ser criança. O certo é que, se eu conseguir aprender de novo, quem sabe eu não tenha com isto descoberto uma "máquina do tempo" e um modo de ser outra pessoa. Melhor.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A chegada: um ensaio sobre o filme

[ALERTA DE SPOILERS]

“A chegada”: um ensaio

Prelúdio

Eu quase não vinha para Fortaleza. É natal e meus pais e irmão insistiram para que eu viajasse para cá. Acabei vindo porque minha mãe usou um argumento infalível: o de que a cada ano que passa é um ano a menos que temos juntos. É interessante isto porque o raciocínio dela é invertido. Não seria um ano a mais cada ano que passamos juntos? Não. É um ano a menos diante da morte. Esta impossibilidade de todas as possibilidades, como dizia um filósofo alemão – que falarei dele mais a seguir. Eu vim para ter mais tempo. Para ganhar mais um ano. Eu não sei como será o ano que vem, tampouco se estaremos juntos ou mesmo se eu estarei aqui.

Eu perdi as sessões do filme “A chegada” em Belém. Ele ficou muito brevemente em cartaz. O meu amigo, Adilon Koury, insistiu para que eu fosse ver. Ele disse que este filme já poderia ser considerado um clássico sci-fi.  Eu cheguei a ir ao Cinépolis do Boulevard Shopping, em Belém, mas ao chegar lá, na hora da sessão, conforme o site dizia, o filme fora trocado por um outro. Não sei o motivo. Sei que fiquei sem assisti-lo. Então aproveitei esta minha visita a minha família de Fortaleza, no natal deste ano, para assistir filme caso estivesse passando. E estava.

A sessão de “A Chegada” era no Cinépolis do Shopping Iguatemi. Eu estava na Livraria Leitura, do Shopping RioMar e saí muito apressado para não perder a sessão. Os shoppings são próximos, mas são muito grandes, é natal, e fiquei com muito medo de perder não chegar a tempo. Achava que faltavam apenas dez minutos para começar. Mas no táxi para o Iguatemi, percebi que eu estava uma hora adiantado. Como não durmo muito bem, às vezes tenho estas confusões sobre o tempo. Normal. Ao menos fiquei feliz por não estar atrasado. Comumente sempre me falta tempo. Eu tento não o obedecer.

Cheguei no Iguatemi. Subi o primeiro lance de escadas. Logo diante de mim, tive a forte impressão que tinha visto minha amiga, Juliana Diniz, com sacolas nas mãos, vestindo rosa. Só poderia ser ela. Cabelo curto. Magra. De andar tão elegante. Mas, acho que não. Seria uma coincidência muito interessante se fosse. Uma pena. Parei para tomar um café na Copenhagen enquanto não iniciava o filme. Subi e peguei uma fila enorme. Consegui comprar e corri para a sala 7. Pude respirar fundo. Estava sentado. Finalmente iria assistir ao filme.
 
1. “O português é uma língua diferente das demais de origem românicas”

O filme começa com as cenas da Dra. Louise Banks com a sua filha. Do nascimento, passando pelas cenas com a filha criança, brincando de xerife, até de sua morte, provavelmente por câncer. Parece uma espécie de introdução, prelúdio para a estória central. Logo mais Louise aparece em uma universidade. Ela é professora de Linguística. A cena de sua aula se dá com Louise iniciando uma explicação sobre a língua portuguesa, uma língua que, segundo ela, diferencia-se das demais línguas de origem românica. Não se fala muito sobre, apenas que teria o português se iniciado na Idade Média, na região da Galícia. O comentário mais interessante dela é o de que naquela época, a língua seria vista como uma expressão artística. Uma sugestão interessante de Louise, ao colocar o português como uma língua diferente das demais pela sua expressão artística.

Não sei ao certo o que Louise quis dizer. É possível lembrar que, com traços castelhanos, mas especialmente galegos, o português surge como uma língua musical, “cantigada”, falando de amor. A aula logo é interrompida pelos toques de celular dos alunos. Eles estão atônitos com as notícias. Parecendo bem alheia a tudo, Louise pergunta então o que se passa. E sabe pela TV instalada na sala de aula que 12 naves chegaram à Terra. 12 “conchas”, como passaram a ser chamadas pelos americanos. E em lugares diferentes do globo.

“A chegada” é mesmo o filme que tem se dito sobre. É um clássico comparável a outros do mesmo gênero (“Contatos imediatos de terceiro grau”, Interestellar”, “2001: uma odisseia no espaço”, “Contato”, “Missão Marte”, “Prometheus”, “A esfera”, etc). Mas tem algo nele que me chama muito a atenção: não é um filme só para físicos, biólogos, astrônomos ou religiosos. Ainda bem que temos aqui um filme sobre linguagem. Aliás, sobre linguagem e sobre tempo. É um filme que avança sobre o “cientificismo fantástico” de Hollywood. A questão filosófica sobre Ser, Logos e Tempo, finalmente chega ao sci-fi. Que bom ver um filme de sci-fi que consegue se aprofundar nos grandes temas das Humanidades.

“Eu sou humana”. Isto é o que tenta dizer a Dra. Louise Banks para os alienígenas de sete patas. Eles são muito parecidos com polvos. E parecem lançar uma espécie de tinta preta na tela que os divide com os seres humanos. Louise desiste das tentativas fracassadas de traduzir as mensagens de voz pelos visitantes extraterrenos. Isto seria óbvio. Se eles possuem constituição muito distinta dos nossos corpos, provavelmente porque são de um mundo com pressão, natureza da atmosfera e gravidade diferentes, seus sons propagados no nosso ar terrenos seriam distorcidos, sem contar o mais elementar: quais sons, enquanto linguagem, símbolos, eles estariam transmitindo?

“Eu sou humana” é uma frase que resume bem quem somos. Aristóteles tem uma definição que foi legada à tradição sobre quem somos: “Zoon logon echon” ou, traduzido, “O homem é um animal racional”. Heidegger alertava já para a tradução de “logon”. Teria sido Leibniz aquele que traduzira “legon” por racional, no sentido de dotado de “razão”, raciocínio calculativo, lógico-matematizante. Mas, originariamente, a palavra grega teria muito mais a ver com “légein”, como o verbo “falar”. O homem não seria, então, o animal racional, mas aquele dotado de linguagem, aquele que fala.

A definição de “homem”, “ser humano”, está posta. E com isto temos duas heranças aqui: 1) a do esquecimento da nossa relação íntima com o “lógos” enquanto linguagem; 2) e a da definição, essencialização do que é ser “humano”. Isto é a chave para descriptografarmos a questão filosófica central do filme e para entendermos a minha hipótese aqui: a de que Heidegger e seu pensamento sobre a ontologia tradicional, a metafísica do ente enquanto ente, e sua tarefa de “destruição” das sedimentações encrostadas sobre a questão fundamental acerca do Ser mais originário, o “Seer” (Seyn) de que falava, tratam-se da melhor via para entendermos que são quatro o número de temas centrais de “A chegada”.

Os quatro fundam outros temas, como, por exemplo, quem nós somos e de que modo lidamos com as coisas, nossos instrumentos (armas) e com os outros, com as outras nações e povos. Os quatro temas centrais são: o ser, a linguagem, tempo e a tarefa da compreensão. Em resumo, o que Louise consegue perceber a tempo é que a linguagem não-falada dos “heptapods” (nome dado numa certa altura do filme para os alienígenas, que possuem “sete patas”) se expressam por símbolos. Assim, a tarefa da compreensão exige outro entendimento de tempo. Isto é importante e exige de nós um esforço hermenêutico mais dedicado. Aliás, “hermenêutica”, ou simplesmente “tarefa da compreensão”, também é central no filme, como elenquei.

Demorei muito para entender a questão da hermenêutica. Só com Dilthey fui entender que lidar com o desafio de se saber o que quer dizer um texto é uma tarefa de se tentar compreender o outro, de se sair de si, do Eu que somos, para alcançarmos o Tu. O maior desafio, portanto, é o de nos colocarmos no lugar do outro. De estarmos na sua dor, em-dor, in-dor, na-dor, no pathos, na paixão, no sentimento do outro. A tarefa maior é o de entender a “visão de mundo” (Weltanschauung) do Tu diante de nós, do ser que está conosco (mit-sein). E isto nos leva para uma questão. A questão ética com o outro. Com o modo como podemos compreende-lo e também como podemos compreender o mundo no qual estamos vivendo e interagindo, enquanto ser-no-mundo (In-der-Welt-sein).

2. A Hipótese de Sapir-Whorf e a filha de Louise

Assim, Louise passa a ser a prova viva da chamada Hipótese de Sapir-Whorf. Esta “hipótese” é mencionada pelo personagem Donnolley. Ele é o físico que trabalha com Louise. É interessante registrar novamente aqui a observação de que este filme, “A chegada”, é um dos raros filmes sci-fi em que Hollywood se lembra das Ciências Humanas, Filosofia da Linguagem. É um dos raros momentos em que o seu “cientificismo fantástico” é deixando em segundo plano e dialoga com brilhantismo com as Humanidades. Bem, destacado isto, voltamos à Hipótese de Sapir-Whorf. Donnolley questiona Louise se ela não tem percebido que, com o passar do tempo, trabalhando incansavelmente com os “hepapods”, ensinando-os e aprendendo com eles nossos vocabulários, traduzindo-interpretando nossos modos de comunicação, ela já não estava começando a pensar diferente.

Fundamentados nos estudos mais primordiais de Humboldt sobre linguagem, a partir do conceito muito germânico de “visão de mundo” (Weltanschauung), a Hipótese de Sapir-Whorf tem este nome porque foi desenvolvida pelos linguistas Spair e Whorf e diz, basicamente, que quando aprendemos uma língua nós alteramos nosso modo de pensar, passando a pensar segundo a estrutura desta outra língua. Assim, deixamos, ou, ao menos, “fundimos os horizontes” (Gadamer), desde o nosso próprio modo de pensar, de acordo com a nossa chamada língua-mãe, com uma nova forma de vida. Isto é muito importante para se entender o desenrolar da trama. Louise sofre mesmo com uma mudança de pensamento. Só não imaginava – tampouco nós, no cinema – que esta mudança de pensamento seria tão profunda, que alteraria sua estadia no “mundo” e também no tempo-espaço.

O filme todo é feito com os sonhos de Louise com sua filha morta,  mass somente com a descoberta de que a resposta para a pergunta que o exército americano queria, “Qual é o propósito de vocês na Terra?”, é que entendemos que eles queriam nos dar um presente. Uma arma. Mas não uma arma de guerra, e sim um utensílio. E o utensílio era a linguagem deles. Uma linguagem que nos dá ciência do tempo futuro. Foi com esta linguagem que se pôde descobrir, com isto, que os sonhos de Louise não eram com o passado, mas com o futuro. Mas, por quê tal língua seria tão poderos, podendo, inclusive, ser vista muito além do que mero utensílio?

A resposta está no fato de que nós entendemos a linguagem como um instrumento, um “organom”, como diz Gadamer em Verdade e Método. Só que a linguagem não é um instrumento. A linguagem é o nosso próprio mundo. O nosso “médium”, nosso meio de habitar no mundo (Heidegger) e de interagir com ele, entendo a linguagem para além da noção do mero uso ostensivo, como dizia Wittgenstein em “Investigações filosóficas”. O modelo de compreensão de que a língua é um objeto de representação entre nossa alma e o mundo das coisas não é definitivo. Nem é o melhor meio de entender a linguagem e o modo como lidamos come ela e com as coisas.

Wittgenstein, mesmo no prefácio das “Investigações”, já dizia que tinha superado o modo de compreender a linguagem do seu “Tractatus-logico-philosophicus”. A linguagem se dá pelos jogos em que interagimos com outros falantes, jogadores. A língua como instrumento de representação é só um dos modos de se lidar com ela. Mas o que os alienígenas tinham a nos ensinar era algo maior. Algo que só podemos entender se associarmos Wittgenstein com Heidegger e Gadamer.

O grande segredo não era exatamente o de que o presente que eles queriam nos dar era somente a língua. Mas, com ela, uma nova forma de ver o mundo... O espaço e o tempo. Com a língua dos “heptapods”, poderíamos, agora, a ter o futuro e o passados no campo da nossa compreensão. Assim, os sonhos de Louise com sua filha morta não eram com o passado. E sim com o futuro. Com a filha que Louise ainda iria ter ainda. Mas como isto seria possível? Como uma língua poderia alterar toda a nossa compreensão de tempo-espaço?

3. O Ser “no” Tempo e o Ser que pode ser compreendido é Linguagem

Gadamer tem uma frase famosa: “O ser que pode ser compreendido é linguagem”. Esta frase pode estar nos querendo dizer que o nosso único acesso ao Ser, a esta instância misteriosa, pela qual a Filosofia como Metafísica, como Ontologia, tem buscando saber “o que é”, seria por meio da linguagem, do “logos”. Então o nosso acesso ao Ser somente pode ser feito por meio do mundo no qual estamos inseridos. Este mundo, que não é a Terra. Este mundo, que é o da linguagem. Muito além do que a linguagem escrita, este mundo é o dos símbolos por meio dos quais os significados das coisas, dos instrumentos, dos entes e das palavras abstratas, abrem-se para nós, seres que estamos já lançados “aí”, entre os demais entes, via linguagem, nós, o Dasein, o ser-aí.

Dito isto, resta saber como podemos ter acesso, estarmos abertos de modo mais autêntico e original ao Ser. Heidegger tem uma intuição genial. A tradição respondeu à pergunta “o que é o Ser?”. E, ao fazê-lo, a tradição invoca uma resposta atemporal. Diz que o Ser é uma forma pura (Platão), eterna e imutável, ou uma substância (Aristóteles), que subsiste, mesmo como o devir do tempo sobre a natureza, ou mesmo um ente pensante (Descartes), estável como a substância, ou, ainda, um Espírito (Hegel) que finalmente integram o Eu e o Outro, a forma e a matéria, a cultura e a natureza, o passado e o futuro, findando a história. Heidegger refaz a pergunta pelo Ser e nos diz que a resposta dada não foi a esta pergunta. Pois o Ser, respondido pela tradição da Filosofia, que fazemos na Terra, retirou o Ser do Tempo, do devir.

Nós, seres humanos, procuramos pelo estável. Pelo o que subsiste no Tempo. Nós reduzimos a realidade. Fatiamos o real, generalizamos, esquematizando-o, tornando um “tipo”, uma ideia, um conceito redutor da complexidade do tempo e do espaço, da physis que brota e nos rodeia. Assim, os “heptapods” estão nos oferecendo um outro mundo de compreender a realidade, o Ser. Um modo diferente da nossa linguagem comum estabilizadora, por meio da qual nos expressamos, pondo o substantivo como categoria estável, idêntica, fora do tempo deveniente, predicando-o com categorias contigenciais ou essenciais.  Um modo de perceber as coisas, as pessoas, o espaço, o tempo, o espaço-tempo para além do reducionismo de colocar o Ser como substância fora da temporalidade originária do nosso ser-aí e dentro de uma linha temporal linear, a do passado, que foi, do presente, que vai sendo e se tornado passado, quase que como se não existisse, e o futuro, o das nossas expectativas de infinitas possibilidades no limite da morte.

E oferecer-nos um novo modo de falar é nos oferecer não só um novo modo de pensar, mas também um novo modo de agir, de ser, de usar e de estar no tempo. É um novo modo de manusear o real, o Ser. E é interessante notar como os “heptapods” parecem mãos gigantes, este nosso meio de acessar as coisas que estão disponíveis a nós como instrumentos ou como conceitos abstratos. Uma nova linguagem que não tem mais o conceito de conceito, a ideia de ideia, o substantivo, o predicado, a cópula, aquilo que nos faz saber que em “o raio é luminoso” o “raio” é o que subsiste no tempo, enquanto substantivo”, e o “luminoso” é o que se predica de modo essencial, mas que poderia ser também contingencial como o “azul” de o “triângulo é azul”.

Considerações finais

A nova linguagem a ser aprendida por nós tem outra noção de verbo. O tempo da ação está em aberto. A ação pode ser vista desde o ponto de vista do futuro e desde o ponto de vista do passado. É o presente dos deuses. Vemos agora o tempo porque falamos com eles. Ele ainda nos engole e devora. É o que o poeta Max Martins chama de Hera. O tempo-desgaste. Mas agora podemos “linguisticizá-lo”, ele pode ser compreendido na linguagem e elevado (ou rebaixado?) a nossa consciência.

É claro que é ficção científica. Heidegger sabia da nossa finitude e que nossa temporalidade, fundante até do tempo histórico, é limitada pelo fim-do-tempo de cada Dasein (ser-aí) que “somos”, enquanto único ente ek-siste como projeto de vida aberto e sem ciência do que acontecerá com as nossas antecipações do futuro. Mas o original deste filme é percebermos a intrínseca relação entre linguagem, tempo e ser.

E a vantagem seria que talvez num outro futuro eu poderia encontrar Juliana, talvez ciente do meu destino eu poderia aproveitar melhor cada tempo no presente com a minha família, e o passado já não mais seria motivos de saudade, pois seria um eterno presente. Mas, do mesmo modo, a ciência do futuro via outra gramática poderia ser insuportável. Se o excesso de memória do passado já seria prejudicial (Nietzsche), imagine isto somado à memória do futuro. Donnolley, que se tornará/é/tornou-se pai da filha de Louise, não suportou. Ele não quis este dom dos Deuses.

Afinal, deve ser insuportável saber do nosso destino, perder nossa “abertura ontológica”, nossa liberdade fundante de sermos “infinitas possibilidades”, pela ciência do futuro e ao mesmo tempo ainda sermos mortais.

Ricardo Evandro Santos Martins

Fortaleza-CE, 27 de dezembro de 2016

quinta-feira, 24 de março de 2016

A TEORIA PLATÔNICA DO CONHECIMENTO NA "REPÚBLICA" E NA "CARTA VII".

                 A TEORIA PLATÔNICA DO CONHECIMENTO NA "REPÚBLICA" E NA "CARTA VII".


(Ricardo Evandro S. Martins, 24/03/16)


Para podermos tratar de uma Teoria do conhecimento em Platão, é preciso, antes, que se retome o problema da alteridade herdado de Parmênides. A antiga questão entre ser e “o outro diverso”, isto é, entre o ser uno dos eleáticos e o problema daquilo “que não é” e do “que vem a ser”, fez parte das especulações platônicas. Segundo Molinaro, Platão pôde clarificar tal questão. Platão está essencialmente de acordo com Parmênides quanto á questão da Verdade ser “aquilo que verdadeiramente é”, ou seja, que possui características como necessidade, imobilidade e eternidade. Trata-se do mundo inteligível, alcançado pelo exercício especulativo (a “segunda navegação”). (MOLINARO, 2002).

Assim, pode-se considerar que Platão reabilita a necessidade e incorruptibilidade da Verdade enquanto Ser de Parmênides. Contudo, a originalidade da Filosofia platônica está na formulação de que além do mundo inteligível, o mundo do ser, em que os entes "são" verdadeiramente enquanto formas puras, haveria de se perceber, também, o mundo sensível. O mundo sensível, ao contrário do mundo das formas, é o mundo material, em que a corrupção das coisas impera. O “diverso” do Ser se mostra neste mundo onde tudo “aparenta ser”, “aparecendo”. A contradição evidente entre a eternidade e imobilidade do Ser diante à perenidade e o movimento das coisas sensíveis foi solucionada por Platão por meio da chamada Teoria dos mundos. E é a perspectiva dualista de Platão que explica a sua Teoria do conhecimento. Pois o exercício da Filosofia para Platão, enquanto busca erótica pela Verdade, perpassa também pela teorização sobre o caminho à Verdade do Ser.

A Teoria platônica do conhecimento pode ser encontrada no diálogo "A República". Nesta emblemática obra do corpo bibliográfico do filósofo ateniense se pode encontrar a formulação da Teoria dos mundos e de como um filósofo pode ter acesso às formas. Para Platão, “conhecer” é acessar a Verdade do mundo ideal. As ideias, ou, ainda, as formas, não se tratam de um ambiente estacionado em um mundo distante, “mágico”. A Filosofia platônica, como legítima herdeira da querela Heráclito-Parmênides, lida com a questão do logos, da linguagem, dos “entes que são” expressos verbalmente pelas palavras. (PLATÃO, 2002).

Assim, o mundo inteligível é o mundo em que simples objetos como “mesa”, “cadeira”, “caneta”, e até entes mais complexos, como “Justiça”, “Coragem”, “virtude”, “Bem”, possuem uma conceito definido, uma forma própria ("eidos") e imutável. Estas formas são os conceitos abstratos de cada objeto-palavra. Deste modo, apesar de no mundo sensível se poder encontrar diversos tipos de mesas, com variadas cores e modelos, é preciso saber o que dá ao homem a certeza de que todos estes objetos podem ser chamados de “mesa”. Isto pressupõe uma essência, uma forma, que subsiste apesar da multiplicidade. E, como não poderia deixar de ser, pois, do contrário, a Filosofia seria impossível, estas formas são acessíveis, quer dizer, inteligíveis pela especulação filosófica. Mas resta saber como o filósofo, que vive no mundo sensível, já que possui um corpo tão corruptível quanto às coisas no mundo sublunar, pode conhecer a verdade?

A chamada “Alegoria da caverna” mostra muito bem o processo de “acesso” do filósofo ao mundo inteligível. Este “acesso” é, na realidade, um processo de “ascese”. Trata-se de um processo em que o filósofo precisa forma-se, preparando o espírito para o conhecimento daquilo que é real, verdadeiro: o ser. O mundo inteligível só pode ser conhecido por quem está no mesmo nível de abstração. Como o homem é dotado de corpo e alma, a sua parte eterna, que opera por meio da especulação teórica, pode conhecer a forma essencial da “mesa” e também da “justiça”. O prisioneiro que, antes, acreditava que as sombras que enxergava na caverna era o real, ao sair de lá, tendo acesso à luz do dia, pôde perceber que a sua “realidade” não passava de sombras, aparências do Ser. Mas este processo de “saída da caverna” exige do homem, enquanto amante da sabedoria, da verdade, um exercício de inteligência auxiliada pela dialética. O processo de “dar à luz” ("maiêutica") aos conceitos por meio do diálogo feito entre perguntas e respostas ("elenchós") é o “caminho” para o conhecimento do que “as coisas são”. Da Verdade dos entes. (PLATÃO, 2014).

Esta posição do parágrafo anterior é o que Platão traz em sua Carta VII. O conhecimento não virá ao filósofo por meio de dádiva. É preciso fazer com que ele se lembre da sua existência espiritual, quando conhecia tudo, antes de sua “queda”, para que rememore ("anamnese") o que no fundo já sabe. No entanto, este processo de ascese por meio da rememoração da vida espiritual exige um esforço argumentativo, dialético. A “segunda navegação”, ou seja, a especulação filosófica, demanda certa “fricção de argumentos” para que o “fogo” do conhecimento seja aceso. Por isto, Platão, na ocasião de sua Carta ao Díon, alega que a linguagem escrita não supera o aprendizado por meio do procedimento de perguntas e respostas entre as pessoas que procuram a verdade. Neste ponto, o aprendizado, a formação humana ("paideia"), que constituirá a humanidade de uma pessoa, demanda esta vivência pedagógica que está além do estudo pela leitura de textos.

Deste modo, pode-se concluir que, para Platão, o conhecimento exige a “segunda navegação” guiada pelo método dialético, em que as ideias são “paridas” por meio do jogo de perguntas e respostas. O “parto” destas ideias também não deixa de ser um processo de recordação de um tempo em que a nossa alma imortal acessava a essência das coisas do mundo sensível. Com isto, pode-se constatar que a Teoria platônica da verdade exige um “olhar” especulativo para além do mundo sem realidade ontológica. Exige-se um olhar para o mundo das formas inteligíveis, em que a nossa inteligência, o espírito, possui identidade substancial. Mas um olhar especulativo que exige dialética, refutação, jogo livre de perguntas e de respostas.

REFERÊNCIA

MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. São Paulo: Paulus, 2002.

PLATÃO. A República. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.

______. Carta VII. Disponível em: http://platon.hyperlogos.info/Platon-Carta-VII. Acesso em: maio de 2014.



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A TEORIA PLATÔNICA DO CONHECIMENTO NA  "REPÚBLICA" E NA "CARTA VII".(Ricardo Evandro S. Martins, 24/03/16)Para...
Publicado por Ricardo Evandro Martins em Quinta, 24 de março de 2016

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Estação fantasma

Em uma frequência determinada
Ha uma antiga transmissão
Sobre nós dois,
Sobre como seríamos.
O locutor é uma criança,
Talvez nosso filho
Ou só o teu, imaginando...

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Coisas ocultas desde a criação do mundo



Quando bebo do impulso lancinante
Há um pranto que ladrilha minha estrada
Que se atira em meu peito de espinhos,
E chama-me depressa à sua morada.

Não vem a mim como vem a aurora,
Nem temível como legião
Mas sussurra docemente em meu ouvido
Coisas ocultas desde a criação.

Mas uma espada lhe trespassa a alma
Amarga dor e sede sente.
É por mim que chora a Senhora
E com o orvalho me beija de repente.

A descendência da mulher então proclama
Do seu sangue a própria efusão.
Que mistério é esse que me toma,
Como filho de tão imaculado coração!

Sacudo em desespero o seu manto.
No meu rosto, pobre, caem estrelas
E mesmo curvado para baixo,
Os meus olhos, ergo para vê-la.

Doce alma, vaso da Palavra
Busco em ti refúgio de mim mesmo
E agora só me resta perguntar
Se é a ti ou ao Outro que almejo.

Vá embora ó Príncipe da morte.
Deixa-me a face Dela contemplar
Que se não há lugar para mim na vida Eterna
Que ela mesma seja o meu lugar!



David Carneiro
22/02/2014

terça-feira, 9 de julho de 2013

O SER E O DEVIR


micro Tragédia moderna

(Em frente a um dos sagrados templos de Delfos, entram em cena o Ser e o Devir, ambos compartilhando visões, tentando, com certa dificuldade, enxergar os mesmos fatos ao longe. Esforçavam-se - ora cerrando um pouco os olhos, ora sobrepondo as mãos palmadas na testa, acima dos olhos, ou mesmo movimentando-se para aqui ou acolá no afã de encontrar melhor posição - para reconhecer o que se passava naquele vermelho horizonte de entardecer).

Ser: vês como aquele Heráclito erra leve - ou melhor: leviano  - flutuando, ora em círculos, ora rápido para cima, ora vagaroso para baixo? Parece não saber o que faz ou para onde vai! Tudo soa como tamanha imprudência e destemperança jovial!

Devir: veja ali do outro lado, senhor: Parmênides jaz em pé, parado, pesa no chão.

Ser (sem dar atenção ao apontamento do jovem Devir): enxergo bem ou estou insano, sagrada Titânida Teia? Aquele Heráclito possui um estranho instrumento fixado à cabeça?

Devir: sim, é uma hélice.

Ser: hélice? Assombrosa coisa sobre humana! Só por isso então que voa. Não voa por si mesmo, de verdade.

(seu rosto figurou expressão incerta entre o assombro e o desdém).

Devir: Verdade? O que é isto, senhor?

(o Ser silencia).

Devir: de todo o modo, por que tanto pasmo, pobre velho?

Ser: por quem tal engenhosidade pode ter sido construída, ora? 

Devir: oh! Sim, é certo que nesse aspecto reconheço que pasmas com razão. Isso só os deuses sabem. São futurísticas. Parece construção possível para somente uns dois mil anos além daqui: século XVI, D.C.

Ser: e, por conseguinte, o que Diabos são essas coisas de anos e D.C., jovem? Explica-te, pois já começas a ficar assombroso e desarrazoado! Pretendes, com essas palavras novas me assustar ou...

Devir: senhor, senhor... consegues enxergar Parmênides ali no outro lado?: está tão pesado, mas tensiona – é certo que, como vemos esforça-se, debate-se em dificuldades – dar um passo avante.

(o Ser finalmente presta atenção à Parmênides. Ao enxerga-lo, imediatamente treme de medo e segura-se em um dos braços do mais novo. Este que olhava extasiado).

Devir (já alucinado, com os olhos flamejantes, irreconhecíveis – que já pareciam, realmente, os de um louco): e veja, ele calça, não nossas humildes sandálias, mas botas atômicas – botas de aço enriquecido com energia nuclear de Urânio. Sacou que massa essa maquina para os pés?! Tecnologia chinesa bolada lá pelos 2078 ou 79. Ele vai pisar! Vai pisar! Dará o derradeiro passo. Não vai suportar!

Ser (o pobre velho, com sua expressão já tomada pelo absoluto terror, tentando, sem êxito, falar; preso no embargo de uma repentina gagueira irredutível balbuciava grunhidos): o... que... não...

Devir (soltando intensas e insanas gargalhadas): ah ah ah ah!!! Este louco Parmênides avançará mesmo com este passo! O pé tecnológico está erguido, meu velho, é incrível! Não terá volta, oh santo Ares! Ah ah ah ah!!! Pé no chão*... Preparemo-nos! A phisis deste sagrado solo ocidental não resistirá. Será quebrada! Ah ah ah!!!

Coro

Fissura cindida no duro se abriu.
E o Abismo sem tamanho rachou neste estrondoso terremoto.
Por Zeus!: abriu mais, mais mais e mais.
Estamos loucas?
E, dentre trovoadas sem fim o autor do Ser
Com suas botas de ferro sucumbiu pelo próprio ato:
Foi sugado, como o mais pesado, pelo buraco obscuro.
Pelos céus, o que há de haver lá em baixo, santo Júpter?
Para esta derradeira resposta nem mesmo os Oráculos poderão dar enigmas
Caindo
- E aí, a curiosidade de Logos chega ao seu fim
sendo que é neste mesmo ato que ela alcança a sua máxima vontade –
Saberás.
Isto tudo diz respeito ao chão.
Pairando sereno, o senhor do Devir sorridente
Regozijando-se com as carícias dos ventos que lhe tocam a cutes
Ainda voando está, graças a Vince, sem precisar do chão.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

REVOLTA SEM PARTIDO E O NIILISMO


um breve ensaio

  “Sem partido! Sem partido!”: eis um dos mais noticiados (http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2013/06/sem-partido-grita-a-multidao-a-espera-dos-protestos-em-sao-paulo-4172634.html) pela imprensa nacional urros de ordem clamados pelas multidões no segundo dia de manifestação na cidade de São Paulo. Alguém teve a coragem de tirar do baú, soprar a poeira, levar de baixo do braço e finalmente levantar em meio ao povo uma pequena bandeira vermelha do velho Partido Comunista Brasileiro (PCB). Resultado: retaliação, desqualificação. Um pequeno grupo de partidários do PSTU também levantou sua bandeira e clamou palavras de ordem de seu partido. Resultado: tais clamores foram humilhantemente abafados pelas vozes muito mais poderosas da grande maioria apartidária. Casos símiles ocorreram no Rio de Janeiro e em outras capitais. De tudo o que houve até então, esta parte do protesto foi, de longe, a que mais chamou a minha atenção. Por quê?
            Protestos, passeatas, quebra-quebra, revoltas, pessoas nas ruas: tais coisas, a história do mundo já conhece tanto que até mesmo a história do Brasil, este país tão “pacífico” e “despolitizado”, também já experimentou. Porém, tudo isso (protestos, passeatas, quebra-quebra, revoltas, pessoas nas ruas) conjugado a um concomitante apartidarismo generalizado, isto parece ser a novidade. Não sei se estou enganado, mas, esta concomitância nunca foi vista na história do Brasil.
“Agente já tá cansado dessas politicagens de partidos. Estamos aqui todos juntos por uma causa só: por esses vinte centavos a menos e ponto!”: logo após a exibição das imagens do “Sem partido” e da pobre bandeira do PCB vaiada, foi esta a fala, na rua de uma São Paulo ainda no mesmo segundo dia de protesto, de uma bonita estudante de rosto pintado (esta não dava aparências de pertencer às classes D ou E, mas, no mínimo, à C, à classe média) ante às câmeras da Rede Globo.
Algumas horas depois, já à noite, quando eu acompanhava pela internet os noticiários sobre os violentos confrontos ocorridos no centro do Rio de Janeiro (em frente à ALERJ), já começavam a pulular as primeiras notícias sobre as mais variadas e abrangentes reivindicações que contradiziam absolutamente àquela primeira - pretensamente mais objetiva e pragmática - declarada pela bela jovem de rosto pintado. Estas novas reivindicações podem sintetizar-se na seguinte máxima: “queremos muito mais do que estes simplórios vinte centavos!”. Ao ir paulatinamente lendo que as pautas eram das mais diversas, que complexamente se ampliavam descontroladamente para além dos “míseros” vinte centavos, imediatamente pensei (muitos de vocês talvez tenham pensado também): “é claro que não são meros vinte centavos que estão em jogo; é claro que o aumento desta tarifa de transporte significou nada menos que uma perigosa cutucada em um mostro há muito tempo adormecido e que estava prestes a acordar”.
E acordou. Porém, sem partido. Isto porque, por outro lado, estão todos cansados de partidos, não é verdade? Falar em partidos, em política, já causa fadiga – ou pelo menos fadigava até esta tão revitalizadora onda* recém-chegada - à maioria de vocês, não é(era) assim? Ninguém aguenta mais à calamidade pública em todos os campos de direito e, ao mesmo tempo, todos parecem estar terrivelmente desacreditados de partidos.
A minha hipótese é a de que todos estão desacreditados de partidos porque, no plano das ideias, todos estão igualmente desacreditados de fundamentos. Esta mania de procurar o fundamento do agir humano – em última análise, de perseguir obsessivamente a Verdade - já parece revestir-se de uma vetusta aura de séculos XIX e XX (águas passadas). Sim, me desculpem os filósofos e teóricos sociais conceitualmente rigorosos de plantão (não é errado ser conceitualmente rigoroso – portanto, se acharem que for o caso, podem tomar-me aqui como um petulante descuidado com os conceitos), estou falando dos cogitos, dos imperativos categóricos, dos Contratos Sociais, das teorias liberais das auto regulações da economia (mediante a oferta e a procura), dos materialismos históricos dialéticos, das mais valias cientificamente iluminadas pelas luzes, etc. Enfim, me refiro aos projetos científico-filosóficos que normatizam o que o homem seria ou e deveria ser a partir de uma espécie de peso incontestável da razão.
De algum modo, os urros “Sem partido!” me soam como a culminação mais loquaz e inequívoca de um paradoxo bastante específico do nosso tempo (a dita pós-modernidade): o niilismo[1] sendo a própria palavra de ordem da revolta política (“Sem partido!”)! Como isto pode ser inteligível? Isto, por ser uma contradição em termos, embaraça o próprio pensamento (este que se constitui de gramática e esta, por sua vez, de lógica). Uma das semânticas mais habituais da palavra “partido” – tal semântica não é a única (existindo outras, inclusive, que podem até mesmo contradizer esta que trago) - é clara: alguém tem um partido, parte de algum lugar, tem uma referência da qual está do lado, na qual, evidentemente, acredita, se investe ideologicamente; “este é o meu partido!”; “ esta é a minha verdade!: a do meu partido”. Ora, quem compõe um partido* na política, evidentemente que não está satisfeito com o que vê e organiza juntamente àqueles de ideais semelhantes um novo projeto para a sua sociedade, diferente daquele estabelecido. E na modernidade – refiro-me aos tempos políticos que sucederam à Revolução Francesa – passamos ainda a ter mais uma – e ainda mais pretensiosa - mania: a de pretender fundar qualquer nova ordem social numa teoria; a saber: em uma racionalidade metafísica.
No entanto, é justamente a propósito desta pretensão mesma que, cada dia mais as pessoas hoje vêm se tornando desacreditadas (mesmo que digam isto a si mesmas desinstrumentalizadas deste vocabulário próprio à tradição filosófica). Deste modo, estamos diante de uma, antes nunca vista com tanta clareza, curiosíssima espécie de limbo niilista: as pautas de reivindicação se ampliaram dos vinte centavos à generalidade das nossas profundas, históricas e estruturais (em nosso país) mazelas políticas e econômicas, porém, ao mesmo tempo, ninguém tem partido (em outras palavras: ninguém possui um paradigma teórico, um programa ideológico para o Brasil).
Vou tomar emprestada uma genial ideia de Camus (2010, [1951])[2] – a de que “(...) a afirmação implícita em todo o ato de revolta estende-se a algo que transcende ao individuo, na medida em que o retira de sua suposta solidão, fornecendo-lhe uma razão para agir” (p. 28) – para lançar a vocês uma pergunta: como revoltar-se sem tomar partido de nada, de nenhum novo projeto para colocar no lugar? Se nós queremos modificar estruturalmente tantas coisas, não precisaríamos saber o que propor?
Tenho lido por aqui proposições consideravelmente perigosas – em minha opinião, até irresponsáveis – tais como "vamos parar o país e se não resolver vamos ter que demitir cada vereador, deputado, senador, prefeito, governador, e se for preciso, a presidente"; ou “o Brasil vai parar. Vamos mostrar ao governo que quem faz um país é o povo, e não os políticos. Unidos podemos fazer esse país mudar. Ou o governo nos respeita, ou paramos de jogar”. Não vejo muita inteligência nessas declarações. O modelo político de nossa sociedade já é aquela segundo a qual a soberania deve ser do povo. Essas pessoas estão com uma insatisfação transbordando muito justificadamente em seus corações e com uma vontade de fazer algo que é muito nobre, mas, se não pararmos agora para estudar quais são as pautas possíveis e realmente a quem devem ser destinadas (não creio que seja somente, na porta dos governos, à política parlamentar – a esta também, é claro), vamos agir sem saber por que. “Ou o governo nos respeita ou paramos de jogar!”. Como é que se para de jogar? Alguém já viu as linhas de forças, as estratégias do Poder “pararem de jogar”? Desestabilizar generalizadamente sem parcimônia todas as instituições políticas do país nesse caça às bruxas pode ser ruim por diversos motivos que precisaríamos de outro texto pra analisa-los.
Posicionar-se, sem partido (gostaria que pensassem nesta palavra – “partido” – em um sentido mais amplo do que simplesmente PT, PSDB, PMDB, PPS, etc.; começar pela etimologia pode ser profícuo nesse caso), simplesmente “em prol do Brasil” não é um pouco vago?
O século XX, como aponta Hobsbawm (2005), foi o século dos grandes projetos políticos pretensamente fundados em modelos de racionalidade e que foram levados à extremos nas sociedades ocidentais (industriais e não industriais): partidos socialistas, partidos comunistas, partidos nazistas, partidos fascistas, partidos liberais (Estado mínimo), partidos liberais do bem estar social (Estado médio), partidos católicos, partidos socialistas-católicos, etc. Em todos estes algo em comum: a idealização de um grande Bem, de uma grande causa para ser militada. Mas, não militada de modo abrangente e vago, e sim para ser militada a partir de uma profunda crença em algum referencial explicativo sobre a realidade. Quanto às consequências que conhecemos destas águas que parecem estar passando: grandes guerras, início de um veloz desenvolvimento tecnológico; e, mais tarde, ditaduras, um mundo polarizado, mais desenvolvimento tecnológico, uma “guerra fria” e uma política, após um suposto triunfo de um dos polos, amansando-se, em linhas gerais, em regimes liberais, ditos democráticos e de política representativa.
Mas, a propósito, falando em “idealização de um grande Bem”, peço licença para viajar um pouco mais alto nas ideias sobre as revoltas e lembrar algumas observações de Freud. Este (1976 [1921]), em seu interessante trabalho Psicologia das massas e análise do Eu, afirma que Gustav Le Bon descrevera muito acertadamente quais seriam as principais características comportamentais que assumem das massas de indivíduos quando reunidas (sendo tais características, dentre algumas outras, o rebaixamento das faculdades racionais civilizadas e também da capacidade de análise lógica da coerência das proposições, pareado ao aumento/emergência inversamente proporcional das tendências a agir afetada e impulsivamente seguindo o calor das sugestões de frases feitas, dos lideres e de outros estimulantes simplórios). Porém, quanto a explicar o que, que força seria esta capaz de manter unidas, num laço fraterno, as massas - para além de descrever os padrões de comportamento dessas – o autor declara com todas as letras que “Le Bom não responde a esta questão” (p. 96).
Freud (1976 [1921]) então, pretendendo responder ele mesmo que percuciente força seria esta que manteria as massas unidas – em “estado hipnótico” (p. 99) – tal como grandes repentinos irmãos, afirma - tendo por base todo o seu referencial psicanalítico em pano de fundo (dentro do qual, deve-se aqui lembrar que “o pai é o que gostaríamos de ser” [p. 134]) - que os processos de identificação com a figura de um líder seria a misteriosa força unificadora que Le Bom desconhecera. O líder, figura que reunindo em si caracteres seguramente amparadores e afirmativos, seria aquele que teria a facilidade de - assumindo a função substituta, para cada individuo, do que outrora fora um pai - ser altamente investido libdinalmente dos ideais do eu de tais indivíduos[3]; lembrando-se ainda de quais Freud ressalta serem as três principais características das identificações:
(...) primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção de um objeto no ego; e terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto do instinto sexual (p. 136).
Tendo isto em vista e, para concluir com o que eu gostaria de trazer acerca das observações freudianas profícuas à nossa presente reflexão política, eis o há de mais útil e interessante naquelas (finalizarei articulando-as ao nosso tempo presente):
Ao mesmo tempo desta devoção do ego ao objeto, a qual não pode mais ser distinguida de uma devoção sublimada a uma ideia abstrata, as funções atribuídas ao ideal do ego deixam inteiramente de funcionar. A critica exercida por esta instância silencia; tudo o que o objeto faz e pede é correto e inocente. A consciência não se aplica a nada que seja feito por amor do objeto; na cegueira do amor, a falta de piedade é levada até o diapasão do crime. A situação total pode ser inteiramente resumida numa fórmula: o objeto foi colocado no lugar do ideal do ego. (p. 143, 144).
Nesta interessante passagem, constatamos, primeiramente, a afirmação de que a devoção que o eu teria por um objeto narcsicamente identificado “não pode mais ser distinguida” da devoção que este mesmo eu pode acabar tendo também por uma “ideia abstrata”. Ora, tudo que acabamos de ler Freud declarar a propósito dos processos de devoção de um eu por alguém de carne e osso está, também poderia ser aplicado aos projetos de fundamentos (os fundamentalismos entram em cena como atraentes aos Eus vagantes pelo mundo): dentre muitas outras ideias abstratas que poderíamos pensar – Freud, no mesmo texto, reflete sobre as igrejas e os exércitos – evidentemente que podemos incluir os partidos políticos.
Uma segunda curiosa afirmação presente citação é a de que na cegueira do amor que estaria em jogo na idealização de um elevado Bem (amado) – tal Bem pode ser “uma ideia abstrata”, não percamos isto de vista – os indivíduos poderiam ser levados “até o diapasão do crime”. Novo paradoxo: aquela pessoa ou ideia abstrata que significaria à um individuo a própria personificação ou síntese de um desempenho cultural ótimo, perfeito, poderia conduzi-lo ao próprio reverso deste afã: ao crime. Crimes em nome do Bem: a primeira coisa que isto me lembra é o agueiro Dostoievsky que, ainda no final do século XIX, pressagiara algo de uma realidade política póstuma ao lançar aos seus leitores o difícil dilema de seu Raskolnikóv. Em seguida, lembro-me mesmo do que foi o próprio século XX, tal como ilustra Hobsbawm.
Mas, ao nos depararmos, agora no século XXI, com um grito de guerra que exclama “Sem partidos!” nas ruas de São Paulo, penso que algo no discurso de Freud precise ser atualizado (ou repensado em face às novas contingencias): se as pessoas estão revoltadas contra tudo sem, em contra partida, tomar partido de nada, que objeto (pessoa ou ideia abstrata) há agora, em nossa atualidade, para ser identificado (quero dizer: investido libidinalmente nos processos de identificação)? Não há objeto; e as manifestações em nossas ruas mostraram que já não há da forma mais escancarada possível. Será possível começarmos a pensar e fazer a política assim? 
Não me é estranho observar que nas sociedades dos nossos tempos (nas grandes metrópoles brasileiras, por exemplo) - que, por pressuporem-se emancipadas de todos os projetos morais de tempos passados (aqueles marcados pela disciplina e rigidez dos padrões "civilizados" de conduta), se dizem tão cosmopolitas, globalizadas e avançadas quanto à convivência e respeito às diversidades – tenham pululado com incrível força os fundamentalismos religiosos (igrejas evangélicas neopentecostais, Assembleias de Deus), os arrastões racistas quase “inexplicáveis” dos Skinheads e dos ditos Neo-nazistas em São Paulo (noticiados com frequência), as grosseiras tentativas de patologização ou criminalização das diversas formas de minorias (os homossexuais e os usuários de drogas, por exemplo). Esses grupos estão desesperadamente unidos, ouso interpretar, por alguma força psíquica cuja uma das características comuns é o perigoso - porém estruturante (sim, parece este ser um dos únicos modos de estruturação possível em face à fragilidade destas subjetividades, infelizmente) - fanatismo por algo (um objeto, uma ideia) pareado à intolerância e às manifestações de ódio para com o outro. Estas organizações – evidentemente que não posso referir-me à generalidade delas, mas apenas àquelas que exageram (que não são poucas, crescem) - não parecem ser compostas por sujeitos pouco vulneráveis a idealizar objetos e, em nome de suas idealizações, chegar ou pelo menos aproximar-se do diapasão do crime. 
Com efeito, deixemos no ar a seguinte difícil questão: seremos mesmo capazes de, de algum modo - como temos gritado apartidariamente em nossas ruas -, afirmarmo-nos politicamente na ausência de objetos? O que dizer sobre esta surpresa que estamos vivenciando aqui no Brasil nesses últimos dias?
 Elaborar algo consistente ainda é difícil, pois estamos no pleno olho de um furacão; de um furacão cuja genealogia só poderá ser feita, em sua descritividade, com um mínimo de distanciamento histórico. Por enquanto, minha contribuição, contudo, à nossa conjunta reflexão – esse apartidarismo generalizado me aturdiu -, será finalizada com uma provocação que já foi escrita há sessenta e dois anos atrás:
Qualquer filosofia da não-significação – “Sem partido!”[4] – vive uma contradição pelo próprio fato de se exprimir. Com isso, ela confere um mínimo de coerência a incoerência, achando sentido naquilo que provavelmente não tem nexo. Falar repara. A única atitude coerente baseada na não significação seria o silêncio, se o silêncio, por sua vez, não tivesse o seu significado. A absurdidade perfeita tenta ser muda. Se ela fala, é porque se compraz ou, como veremos, porque se julga provisória. (...) “São meus inimigos”, diz Nietzsche, “que desejam destruir, não criarem a si próprios”. (CAMUS, 2010 [1951], p. 19).
             


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMUS, A. (1951). L’homme révolté. Paris: Éditions Gallimard, 2010.
FREUD, S. (1921). Psicologia de grupo e a análise do ego. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freudvol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
HOBSBANWM, E. J. Era dos Extremos: o breve século XX. Ed. Companhia das letras. São Paulo, 2005.
MACHADO, R. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Graal, 2002.



ps.: obrigado à Mayumi Fujishima pela fecunda conversa que contribuiu para a produção deste ensaio.


[1] Que descende, em latim, de niihil; o que significa nulidade. (MACHADO, 2002).
[2] Tradução minha.
[3] Para facilitar a compreensão àqueles não familiarizados com os conceitos freudianos: “ser altamente investido libdinalmente dos ideais do eu dos mesmos” é igual a, simplesmente, “ser altamente amado pelo mesmo”. Porém, neste caso, “amado” de um modo específico. “Amado”, primeiramente, significa ser investido (desejado) sexualmente mesmo. Porém, nos processos de identificação, “o objeto em si mesmo é renunciado” (p. 137) do ponto de vista do investimento sexual. É renunciado porque, nas identificações, ao invés de ser tomado como objeto sexual, este objeto seria introjetado no próprio Eu.

[4] Inserção minha.