segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Carta a uma menina



Minha querida menina,



Ontem, mais uma vez, vi você passando no caminho de pedras que leva à sua casa. Com jeito de moleca e um tanto distraída, você cantarolava qualquer tatibilapitzum de cabeça baixa e sorriso malicioso. Pensei em te chamar pelo nome, nome que agora conheço e repito insistentemente, como se, a cada vez que o proferisse, os sons desse nome me revelassem alguma coisa nova sobre ti. Mas meus lábios tremeram e já não pude me atrever. Mesmo assim, não posso dizer que não te conheço. Neste pequeno pedaço da tua existência que passou por mim, fiz morada segura e desbravei cada parte do teu rosto, que ficou marcado em minha memória, vindo e me escapando como as ondas que traziam um perfume que agora se espalha por todas as coisas à minha volta.

Aliás, foi só na companhia do mar, que resolvi escrever-te esta carta. Ele me traz palavras, ele me conta histórias, que vão assim sugerindo qualquer coisa que já não pode sair de dentro de mim e que, no entanto, vai se desfazendo em versos que um a um rasgo e dedico às conchas que jamais conhecerei, sentado nessa imensidão de mar e lembrando do teu pequeno corpo que me traz a calma de ser eu, trazendo-me ao mesmo tempo o desespero de não estar contigo. Como uma vez contou-me um velho Pastor, um certo dia Alfeu também se apaixonou por uma bela ninfa. Mas assim como tu foges, e por que vocês sempre fogem, ela também fugia dele sem dó nem piedade. Conta-se que, por desventura, ao chegar à ilha de Ortígia em sua fuga, ela foi transformada em fonte pelo poder dos deuses. Inconformado, como todos os homens apaixonados com a partida sem razão de suas amadas, Alfeu, em desgosto, também se viu transformado num rio do Peloponeso. Mas tão forte era seu amor que, ele mesmo, Alfeu, não mediu esforços para que, uma vez convertido em rio, encontrasse com a fonte da amada pelo mesmo vasto mar que agora tenho à minha frente.

Ah minha ninfa, bela da manhã cujos passos se confundem com o arrebol da alvorada, sê também minha fonte, sê minha água cuja beleza inesgotável dá a força e sentido que preciso para seguir em frente. Não vês que fugindo assim só te rendes mais àquilo que é inevitável? Será que não vês que a beleza de te ver assim eternamente partindo não é maior do que aquela de te ter perdida em meus braços? Que é esse medo senão o medo do próprio salto rumo a tudo aquilo que esperaste com o coração trancado em noites intermináveis de infinita agonia? Dá-me tua mão, vem comigo passear na beira desse mar infinito, nessa tarde branca de olhos esguios que se curva agora para a calma e plenitude do nosso momento. Vem, deixe que eu te cubra com os meus beijos e te abrace assim com toda a força dos desejos meus, só para calar a tua alma e te mostrar que nada são as palavras perto daquilo que sentem dois corpos que se tocam em fogo. Quero a cada beijo como o vento despetalar um a um dos teus medos, deixando que te repouses quieta e risonha nos braços que agora te buscam como quem busca a fonte que corre para o mar em dor. Ah, minha amiga, nunca mais as noites em que tudo se espera e nada acontece, nunca mais essa angústia de não sei o quê, nunca mais a saudade de tudo aquilo que nunca se viveu. Deixa que eu te observe com esses olhos de carinho, que o meu peito bata à vazão dos teus passos e que eu crie em desenhos de giz o teu sorriso no chão. Mas deixa também que te faça sufocar com as minhas mãos sobre o teu corpo, que te veja soltando esses cabelos lisos em minha áspera cama e que te faça suspirar em chamas de amor e de insônia entre beijos e palavras de desejo sem fim. E saiba que se tardam a se encontrar os nossos caminhos, eu em rio e tu em fonte, é porque já nos encontramos nos nossos mais íntimos desejos, na nossa poesia e na nossa esperança da paz inquietante, a paz das convicções e das paixões ardentes.

Esse rio e essa fonte, que de tudo dão a vida, já não podem viver sem saber que um vive e o outro vive. Nos últimos dias, não tens vivido senão para os meus olhares encantados e eu já não vivo senão para contemplar teus passos sem fim de indiferença. Já não é possível que vivas sem mim e que eu viva sem ti e, no entanto, para ti ainda sou como um sonho, ao passo que tu para mim já és antiga realidade. Mas não tenhas medo dos sonhos que respiram, pois estes também não sabem machucar e não provocam a dor de ter que se acordar no meio da noite, triste e sozinha, presa a tudo aquilo a que condena a madrugada.

Não são mais assustadoras as brasas que o vazio, o peito aberto em flor que o nada e o fastio de tantos sentimentos do que a eterna angústia da solidão interminável. Sei que não acabará agora nosso momento, sei que ele permanecerá suspenso e vivo no ar dos pensamentos e, por isso, já não te peço pressa e nem vontade de atropelar os teus receios. Não sei se é verdade que amores serão sempre amáveis, mas há aqueles que estão inscritos com tanta certeza nos olhares dos amantes, que já fazem parte das histórias de suas vidas antes mesmo que aconteçam, aguardando somente o melhor momento para virem à tona. Mas não te disperses no teu medo, não te compares com nenhuma das outras, cujo primeiro vento apagou o fogo que me unia a elas. Tu és a própria chama, o próprio mistério que mantém vivo meu encanto. Só peço que te permitas e que te deixes viver sem medo, nos braços sem fim do amigo que te espera a cada verso, queimando a mão com a brasa que já me consome o peito.


Em mais uma noite de louca espera,


Seu Giovani.


Por David Carneiro, em 21/10/2009

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