domingo, 9 de janeiro de 2011

O Velho e a flor


Retrato do Dr. Gachet - Vincent Van Gogh

O Velho, com ademais era conhecido por todos ali, caminhava a passos curtos pelas ruas da redondeza. O ar frio e nebuloso da cidade já não anunciava o porvir de outrora. Pressa? Já não havia para quê. O velho sentia o corpo pesado, os olhos vazados em lágrimas que jamais cairiam. Sem saber por que, seu peito agora estava todo doído, de uma dor que jamais havia experimentado, nem mesmo nos tempos áureos de sua juventude, quando geralmente se tende a exagerar nos amores e nas dores que se sente, para que, assim, talvez, a vida pareça ter algum sentido.
Este já não era mais o caso. Como ele mesmo gostava de lembrar, suas ilusões estavam desfeitas. Já não havia beleza que o satisfizesse, nem um Deus no qual acreditasse. Aliás, a beleza da iconografia eclesiástica, que outrora decorava seus aposentos, parecia a ele agora o último véu que encobria o infame e sem nexo da vida. Para apoiá-lo sobre a terra, só mesmo sua boa e velha bengala, a única certeza que tinha de que não cairia desfalecido sobre o chão maciço, sem inferno por debaixo e nem tampouco um céu no extremo oposto.
Mas foi durante a caminhada daquele dia cinzento e frio que se deu o acontecimento. Aquela flor, dando-se assim na forma de uma benção, foi para o Velho como uma espécie de revelação. Ela apareceu tão sozinha e pequenina, emergindo em meio ao orvalho, tão carente de cuidados e de carinhos, que o Velho fez uma coisa que há muito tempo não se permitia: ele sorriu. Sim. E não foram os sorrisos sarcásticos de uma segunda infância, travestida de madureza, que sem aceitar o trágico da vida, julga-se sapiente por sua amargura. Foi um riso gracioso, gratuito, como se tivessem restituído a este Velho os sonhos mais puros de sua tenra infância. Mas desta, ele não conseguia nem mesmo se lembrar. Agora, naquele sem tempo, só havia a flor.
 Por algum motivo, ele não ousou aproximar-se. Sinceramente, não sabia nem como existir na frente dela. Havia algo entre ele e aquela florzinha doce e minúscula, desajeitada e quase lasciva que ele não sabia explicar, algo que, como uma barreira, impedia-o mesmo de dirigir qualquer palavra àquele ser gracioso que agora desabrochava e velava-se à sua frente, como a verdade encoberta pronta para vir à tona à primeira e doce provocação. Mas ele não podia. Precisava afastar-se. Não queria estragar aquele momento com  o que pensava serem desejos repugnantes. Mas que desejos seriam esses? Ele ainda, de fato, possuía algum? A flor o assustava e era tudo que sabia agora. Decidiu partir, sem dizer, ainda, uma só palavra.
Nas horas que se seguiram daquele mesmo dia, o velho não pensava em nada mais que não fosse a flor. Tentava ler um livro e todas as palavras remetiam à beleza do ser amado, desligava as luzes, e logo o esplendor da flor o acompanhava em seus devaneios, como se ela soltasse os cabelos de pétalas e oscilasse como um pêndulo à velocidade de seus pensamentos. Naquele momento, ele não sabia se era a flor que o hipnotizava ou se eram os seus pensamentos que aprisionavam a flor. Começou a imaginar então suas próprias pegadas indo na direção daquela formosa dama, fazendo desvios e espirais só para deixar o caminho menos sério e mais bonito. A flor, ele bem sabia, era sua leveza, uma leveza que pesava todas as vezes que pensava na distância entre a flor e o Velho, entre o Velho e a flor. A distância precisava ser apagada. Era preciso pular o abismo. Ensaiou então por mais de mil e uma vezes à frente do espelho a deferência que faria ao apresentar-se e a declamação primorosa de todas suas intenções. Aquela flor seria, do alto de sua jovial ingenuidade, a paz daquele Velho, o perfeito encontro que daria vida ao andrógino, o retorno ao seio da terra, que o retiraria da dor que agora o despedaçava em memórias famintas, que consumiam cada uma de suas forças, cada parte de seu orgulho e da sua estima, por um colo em que pudesse repousar seu sofrimento. Agora, ele tinha a flor. Parecia que já a conhecia de muito e muito tempo. A flor havia sido feita para ele e ele somente para amar e cortejar aquela flor.
No dia seguinte, o velho acordou cedo. Para falar a verdade, não conseguira nem mesmo pegar no sono. A anunciação dos primeiros raios de Sol foram para ele como que uma graça, que por algum motivo parecia trazer notícias da florzinha que agora ocupava cada um de seus pensamentos. Ainda abrindo o peito à luz da manhã, o Velho sentiu um desejo, o desejo de se mostrar mais belo para a flor. Decidiu então ir ao barbeiro mais famoso da cidade, como há muito tempo não fazia. Na verdade, não sabia se por alguma compulsão pseudo-intelectual ou mesmo alguma tentativa genuína de desprendimento, ele sempre achara ridículo que pessoas da sua idade tentassem parecer mais jovens. “Só conseguem enganar a si mesmas”, dizia. Mas agora ele estava ali, ainda que inseguro e um tanto envergonhado. “Há quantos anos o senhor tem esses cabelos grisalhos? O senhor não acha que tem direito à cor natural de seus cabelos?” Bastaram essas poucas palavras por parte do barbeiro, aparentemente uma praxe para clientes inseguros como ele, mas que naquela hora foram aceitas e abraçadas como a mais profunda e genuína das verdades, na qual o Velho, ainda um tanto temoroso, houve de se agarrar com todas as suas forças. Tinha certeza que em meio às rugas e tufos grisalhos de cabelo, emergiria a virilidade do homem há muito apagada de sua feição. E tudo, tudo por causa da flor. A flor era sua Sonata, a flor era a sua Fontana, a flor era o gaio prazer de sua linda juventude, que retornara agora sem mesmo nunca ter existido. Horas depois, velho saiu do barbeiro com a sensação quase pecaminosa de que agora sim, poderia amar impunemente.
E o Velho inventou um novo caminho, arranjou desculpas e afazeres, traçou parábolas e compromissos com o único objetivo de voltar ao traçado onde, na véspera, havia encontrado a flor. Já havia pensado em tudo, em todas as coisas que haviam de ser ditas e feitas. Consumaria assim o desejo contido há tanto tempo de amar, de amar aquela florzinha que já conseguia enxergar só de fechar os olhos. Mas como poderia amá-la assim há tanto tempo, se só na véspera havia descoberto sua existência? Isso o velho não sabia responder. Mas, afinal, que importava! Ali estava a flor com a qual havia sonhado por toda a sua vida!
Ao avistá-la, finalmente, o Velho sorriu e, à gratuidade daquele encontro, a flor respondeu abrindo levemente as suas pétalas e escondendo os espinhos para que o velho não se assustasse tanto. A flor havia se ferido tantas vezes, que agora, mesmo que não quisesse, os espinhos estavam ali, podendo ferir mesmo aquele velinho, que jamais faria mal algum a ela. Ou seria justamente pela impossibilidade do mal que a flor agora tinha medo, medo de receber do Velho tudo o que sempre quisera? A flor parecia também sorrir aos passos tímidos daquele homem desajeitado, e ia exalando um cálido perfume a ser desvendado quando fosse chegada a hora. Ao aproximar-se, mais uma vez, o Velho falou: “Minha senhora...”. Mas a flor não respondeu. Talvez tivesse falado baixo demais, talvez seus ouvidos não fossem tão bons quanto eram anos antes e nem tivesse se apercebido da garfe que cometera. Então, ele tossiu levemente, encheu os pulmões de ar e recomeçou: “Minha senhora, gostaria de lhe dizer que há muito tempo...” E a flor se fechou. Na mesma hora, o velho começou a tremer, debruçou-se sobre as suas mãos, que, por sua vez, eram apoiadas na velha bengala, e deixou que suas pálpebras escorressem sobre a face, enchendo também os olhos d’água, com lágrimas que, mais uma vez, jamais haveriam de cair. O que ele haveria falado, ou quem sabe deixado de falar para que a aquela flor se fechasse assim, repentinamente? O Velho, tão acostumado a viver sozinho, sabia de tudo o que queria falar para a flor, mas não sabia e nem compreendia a linguagem daquele ser que, para ele, estava separado por um abismo intrespassável. Tudo o que ele queria era contemplar e poder tocar aquela flor, falar-lhe aos ouvidos e saciar-se no colo macio de suas pétalas. Mas ele não sabia o que vinha da flor e nem por que, naquele momento ela havia se fechado.
Não havia mais nada a fazer. Agora, a cada palavra do Velho, a flor se escondia, como que assustada, daquele ímpeto que emergia do abismo mais profundo da solidão. O Velho, agora, desabava por dentro, suas pernas tremiam, mas sabia que havia chegado a hora de partir. Havia perdido, pelo incomunicável, a flor para todo o sempre e aquela dor ficaria sempre guardada com ele, até ser desaguada em esquecimento de lembrança leve. Tentaria dali em diante deixar que morresse em seu peito aquela dor dilacerante e guardar em sua memória o gosto de brisa do encontro, do encontro entre a flor e o Velho, do encontro entre o Velho e a flor. 

David Carneiro 09/01/11

Nenhum comentário:

Postar um comentário