sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O cavaleiro e o vampiro

Embora este fato já tenha ocorrido tem algum tempo, em Belém do Pará, qual seja o do assassinato de uma garota de 16 anos pelo “vampiro” Ezequiel Calado, logo após ter lido uma entrevista concedida por ele à televisão, veio-me à memória, ato contínuo o enredo de Dom Quixote. Escrevi esse pequeno texto logo após, mas pelo tempo exíguo acabei por não o colocar aqui.

Literatura é conditio sine qua non à toda formação humanística, sem ela, os conceitos serão sempre conceitos, a imaginação pobre, e a realidade morta: é por ela, que o indivíduo constrói, pelo princípio de verossimilhança, o mundo imagético com o qual consegue enveredar-se pelo mundo, colorando-o e esculpindo as arestas, ter consciência de si, de suas ações e das conseqüências delas: quem tem em sua consciência a vida de Hamlet, de Hans Cartop, ou de D. Quixote, tem mais consciência de si do que outros que não tiveram contato alguns com tais leituras; consegue propor-se questões até então inimagináveis, ascender ao mundo dos valores humanos; enfim, contaminar-se com a humanidade de tais personagens, entrando no bosque sacro da moralidade. Cervantes, no início da modernidade, profeticamente, diagnosticou fatos hodiernos, como todos os que escreveram com a pena da eternidade, em seu “Dom Quixote” na pag. 93 da edição da editora 34, em resposta às leituras assíduas de seus contemporâneos aos romances cavaleirescos, com as quais estes imaginavam-se, a despeito da realidade, como os guerreiros das Cruzadas, escreveu:

“... que esses malditos livros de cavalarias que ele tem e costuma ler tão de ordinário lhe transtornam o juízo; e agora me lembro de o ter ouvido dizer muitas vezes, falando sozinho, que queria armar-se cavaleiro andante e ir buscar as aventuras por esses mundos.”

Tudo isto seriam palavras vãs, se não fosse Literatura, e não implicasse diretamente em nossas vidas imbuindo-nos de aprendizado que perpassa os séculos. Quando perguntaram, àquele Ezequiel Calado, que assassinou uma garota de 16 anos, este respondeu:

R: Vocês diziam que eram vampiros de verdade no jogo de RPG? De onde surgiu essa vontade de beber sangue?

E: Essa onda de vampirismo era mais coisa de jogos e a fantasia que a gente gostava de viver. A gente gostava de imaginar que era vampiro.

R: E de onde veio essa fantasia de ser vampiro:

E: De filmes, livros, jogos.

R: Que filmes?

E: Filmes como "Anjos da Noite", "Crepúsculo", esses filmes assim.”

A podridão da imaginação desse indivíduo foi consequência de ele nunca ter tido contato com literatura que tenha a dignidade dessa palavra mesmo, ou antes, à educação que recebera na escola baseada em resumos dos resumos que limitam Machado de Assis à “escola realista”, Manuel Bandeira à “escola moderna” e Homero, nem isso, à antiguidade morta. Muito ao contrário do que se pensa, a grande fantasia, é a maneira mais rica para conferir humanidade aos sujeitos, revestindo-lhes de arquétipos com os quais a sua vida irá desenvolver-se, imbuindo-lhe de imagens que torna a experiência humana mais rica, além é claro, de ser a parte precípua e imprescindível de toda formação chamada superior. O que faltou para este sujeito foi exatamente isso, falta de hierarquia de valores, e quando estes andam em falta, o resultado é daí para pior. Aliás, este é um dos quais, responderia caso fosse perguntado, que não existe objetivamente uma leitura infinitamente superior em relação a outras, e que o certo é cada qual permanecer com o seu gosto, seja este incidindo imaginar-se vampiro ou cavaleiro medieval, tanto faz.

3 comentários:

  1. Isso me faz lembrar de O Inferno de Dante Alighiere e os graus de maldade. O 2° círculo tem como referência Francesca, que diz que só pecou por ter sido influenciada por livros, que a incitaram a cometer aquele ato de pecado.

    Pois bem, isso merece uma reflexão, visto que nesse caso a crueldade foi seduzida pelo discurso fundamentalista, irracional e desumano. Conquanto Machado de Assis, em toda sua obra realista, afirme que a natureza do homem é má, penso que a razão foi devorada pelo egoísmo pragmático e não ousaria dizer que isso seria sequer um idílio às avessas. Não há lugar para o inconsciente, pois se há será comprovado a máxima da vontade schopenhaueriana que iguala os seres humanos frente aos demais seres da natureza.

    Esse crime chocou e é infernal. Deixo minha solidariedade à família da vítima.

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  2. Muito boa a ligação com Dom Quixote. Concordo plenamente com a importância da alta literatura numa formação humanística; sem dúvida, ela é quem leva ao mais alto gráu. Porém, acho radical falar que isto ocorreu simplesmente por falta de leituras de qualidade. Caso contrário, 99% da população faria atrocidades.
    O humanismo é algo que pode vir de filmes, desenhos, seriados e até da mera observação, basta uma disposição de espírito que faça com que o objeto(a obra) saia do simples entretenimento. Entendo cada vez haver menos obras que permitam isto, mas ainda há o mínimo para um entendimento do ser humano, que interprete os objetos em sua ligação à ética e a moral do nosso tempo. Creio que isto, com uma educação razoável(que já seria outra discussão), já permite uma concepção humanística.
    Falo isto baseado na hermenêutica, que apesar de a concepção atual ter nascido na literatura, ela visa interpretar tudo que implique significado, e sempre trazendo o objeto ao nosso mundo e modificando a nossa vida.

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  3. Cara Hellany,
    De fato, para mim, foi um idílio às avessas, falta de educação séria e com parâmetros corretos, nada mais que isso.

    Caro Gilberto,
    Certamente poderia ter sido evitado caso ele tivesse recebido uma educação humanística séria, de todo diferente do que nós recebemos em qualquer instituição, sem espaço algum para refletir de fato o que representa a literatura à formação do cidadão, enviesada, além deste fato, por considerações ideológicas que nunca são o suficiente ao entendimento de qualquer obra de arte que seja, sempre limitadas e com pouco a dizer. Claro, a disposição do espírito também sempre é posterior ao início de uma formação humanística, mas, convenhamos, existem objetos que são em si e por si puramente entrentetimento, nunca pensaria em oferecer a alguém a leitura de Harry Potter em detrimento de Dickens, há objetos que são literatura e outros que não, alguns que são música vários que não, de certa forma, tudo tem "significado", a diferença é que uns tem mais do que outros, os que tem universalidade e objetividade são bons artisticamente, os que tem particularidade e subjetividade, não o são; à compreensão do nosso tempo, devemos deixar que a tradição fale por nós, tirar daí os parâmetros éticos e morais, objetivamente concretizados pelo tempo.
    abraços aos dois

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