quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Nunca lerás (Haikais em série).

Só tive uma dança,
Me desejei uma dança.
Me conseguiste por todo.

Mão nas tuas costas,
Meu nariz no teu cabelo.
Firmes, palmas juntas.

Uma frase, ou duas.
Vem o fim da minha música.
Frágeis, as lembranças.

Odores perdidos.
Também teu nome perdido.
Meus Poemas por dito.



segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O homem estátua 3

O Homem estátua ficou paralizado. E não pelo corpo que permanecia sobre banco enquanto sua mente percorria a memória da praça, nem pelos olhos que continuavam piscando para dar sinal de vida ao corpo metálico que agora se questionava em suas profundezas. Sua paralisia era uma constatação, um assombramento. Ele sabia que tinha dentro de si um segredo qualquer. E era uma coisa tão simples e ao mesmo tempo tão linda que o faria do alto da mangueira mais alta derramar poesia sobre toda a cidade, tal era a força do sentimento que portava. E quanto mais forte pulsava em seu peito aquela dor, aquela agonia de ver correr-lhe alguma coisa da alma, mais forte eram os grilhões que lhe prendiam ao silêncio, como se estivesse condenado para sempre à mera contemplação da vida.
Foi quando o homem estátua percebeu que portar este segredo, essa vontade de não sei o quê que sentia dentro de si e que era só dele, era como portar também sua incomunicabilidade. Algo de amargo lhe desceu pela garganta. E, por um minuto, olhou o céu como se não vivesse. Deixou-se então encantar um pouco mais com o resto de dia que ficava daqueles que haviam passado, deixando suas histórias, suas maneiras e seus passos. Ele sabia que sairia dali e mais uma vez percorreria a mesma rua, sentiria o mesmo cheiro da baía e confidenciaria o mesmo segredo com as proas, tentando quem sabe imaginar as histórias que deram nome aos barcos. Mais uma vez nada teria para dizer e tudo conteria dentro de seu infinito incomunicável. O homem estátua sentiu-se só. Desceu do banco, guardou seus pertences e fechou a maleta. As lágrimas que lhe caiam no rosto começaram a borrar levemente a maquiagem. Neste dia, o homem estátua chorou baixinho, como só se chora em Belém do Pará.

David Carneiro, em 21/11/09

O homem estátua 2


Enquanto as horas iam passando, o homem estátua era brindado e castigado pelo Sol, experimentado por crianças curiosas e friamente abraçado por turistas ávidos de recordações da cidade das mangueiras e seus homens estátua que nada tinham de diferente, a não ser pelo ar de profunda solidão. Ele não se importava. Cumpria com diligência e probidade todos os artigos do código de postura das estátuas, quem sabe com intento de ganhar o prêmio de Estátua do Ano ou mesmo pelo compromisso republicano firmado na Estatuinte. Só não gostava mesmo quando, ávidos por fotos ou cheios de curiosidade, os transeuntes não o deixavam ver os namorados que passavam.
Logo eles? Aqueles namorados com as mãos dadas, com aqueles rostos igualmente dados um ao outro, com aquela altivez e com aquela alegria meio boba de se bastarem a si mesmos? Como eram lindos aqueles casais! Por nada no mundo perderia um espetáculo desses. Às vezes exuberantes, às vezes tímidos, não se cansavam nunca de emprestar seu vermelho ao verde da grama, sua poesia aos coretos desbotados e suas poucas economias aos artesãos paroaras, que em madeira ou arame, com enfeites de laço ou coração, lhes apresentavam símbolos de amor, não raro contendo a inscrição: funalo e funala. E então o homem estátua pensava como seria se, de repente, no calor daquelas manhãs da praça, em meio aos coretos, fontes e monumentos pudesse surgir do céu uma lua prateada. Como ficariam ainda mais felizes aqueles casais que descobriam agora o infinito do momento a dois ou simplesmente o redescobriam depois de muitos e muitos anos de distância.
O homem estátua tinha mesmo devaneios, talvez fosse um louco ou um poeta. Pensava inclusive em escrever suas memórias. Não suas, exatamente, pois na realidade achava mesmo que não havia nada de emocionante em sua vida que valesse à pena contar. Ele, homem solitário, sem passado e com um presente um tanto trivial, queria era contar histórias de palhaços, de crianças sem brinquedo, de casais apaixonados, de bêbados alucinados ou mesmo de irmãzinhas franciscanas que socorriam os pobres da praça. Começou a pensar nas primeiras linhas dos escritos, em um exercício mental de fazer dó. Mas nada lhe ocorria à mente. Tinha idéias fabulosas, mas bastava pensar em como pô-las no papel e nada, era como se subitamente tudo lhe escapasse entre os dedos. Isso não lhe parecia justo. Como aquela força estranha que lhe rasgava o peito, que lhe fazia suspirar e, por vezes, cair em lágrimas não conseguia encontrar as palavras certas para vir ao mundo?

O homem estátua 1



Seguia calmamente pela rua naquela manhã de domingo. Horas antes, ainda bem cedo, quando mesmo o sol hesitava em afrontar-lhe o corpo, ele já havia levantado. Não conseguiu dormir bem naquela noite. Mas isso já não era novidade. Ainda sentado em sua cama, observava cada canto do cômodo, procurando qualquer coisa que sabia bem não poder encontrar ali. Por algum motivo, soluçou subitamente e colocou o rosto entre as mãos. Permaneceu assim durante alguns minutos. Em qualquer impulso que veio sabe-se lá de onde, resolveu levantar da cama e enfrentar o dia que nascia. Era mais um dia.
Depois do banho, começou a passar a maquiagem prateada no rosto. O frio da tinta arrepiava sua pele como quem machuca de leve, dando a impressão que todas as suas expressões se congelariam em breve. E, de certa forma, assim o era. Quando a tinta começava a se espalhar pelo corpo, já não havia sentimento em sua alma que não sofresse um certo recrudescimento. Se antes latejavam em sua pele como quem quisesse fugir desesperadamente pelos poros, agora se aquietavam em uma resignação consternadora. A tinta tomava conta do seu corpo. E, alguns minutos, o homem estátua se apresentava em frente ao espelho.
Carregando um chapéu e sua velha mala, ele caminhava em direção à praça. As mangueiras, ainda tímidas, só eram perturbadas pelos cantos dos pássaros da manhã e pela brisa fraca que vinha cumprimentar as folhas. As barracas começavam a ser armadas e já se ouviam as primeiras buzinas e assopros de flautas andinas. Ele olhava o abismo vertical dos prédios, tentando lidar bravamente com a vertigem que o seduzia, procurava engolir com suspiros a nostalgia do sábado e cantarolava qualquer canção que falasse em solidão. As crianças, os pais e os cachorros começavam a chegar. Chegavam também os namorados, os manifestantes e os pedintes que se punham em sentinela. O homem estátua também precisava assumir seu posto.
Do alto de seu banco, fazendo uma pose de rei, ele observava agora as pessoas que passavam de um lado para o outro, agradecendo em gestos tímidos pelas moedas que recebia e mudando subitamente de posição, para o desespero de alguns velinhos que se quedavam assustados. Parou para ouvir o profeta, uma de suas personagens preferidas, pelo qual todos passavam sem dar notícia e com um certo ar de desprezo, a não ser por alguns que não resistiam em fazer gracejos ou xingamentos. “E se estivermos todos errados?”, pensava. “E se nós é que formos os loucos?”. Perguntas como essas sempre lhe davam na veneta. E se prestava então a ouvir humildemente, repetidamente, dia após dia, aquelas sentenças herméticas e palavras sem sentido, tentando arrancar um fio de cabelo que dissesse alguma coisa sobre a vida.

Poema Simples



Ah Maria! Não queria te falar assim de angústia
Nem da pressa desses dias que me jogam contra o tempo
Sei que é preciso que haja um pouco mistério em tudo isso
Mas meus olhos de saudade já não mentem
E nada disso poderei te dar agora...

Só tenho comigo uma cartinha e uma flor
Quem sabe um animalzinho de origami
Não vale mais que um mistério, é verdade
Mas um sorriso teu e tudo feito...
Talvez consiga até te conquistar.
Mas você não me aparece Maria!
Você precisava ser assim tão louca?
Mesmo assim não nego que te quero.

E desconfio que aquele que pediu pra amar baixinho
Ou era casado ou era bem velinho.
E não me importo que me quebrem os telhados
E que fiquem surdos os passarinhos
Quero te amar agora
Com todos os sentidos
Sem mais devagarinho.

David Carneiro 16/11/09

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A falta da pele

Os versos mentirosos contaram ser a tristeza coisa triste
Mal sabiam os poetas charlatões
Que a saudade é tristeza pior que a tristeza
É mal pior que a doença

Me assombras a falta de forma peculiar
Em um aperto no ventre
Em um pensamento pragmático
E um delírio das razões

Benzinho, as noites sem ti nem noites são
Me fazes falta o toque
O olho
A mente
A maneira
E o beijo

As noites sem ti são, no máximo, só noites
Sem tantas alegrias
Com quase nenhuma vontade.
Despidas de desejo
E pobres de festa

A saudade é bactéria
Contamina-me de tristeza
De vontade do que não posso
De saudade das tuas posses
Das tuas ordens
Das tuas vontades fúteis de segurar minha mão

Eu mal consigo pensar
Sou ralo em inspirações
Raso em poesia
És o fermento da minha criatividade
Os versos que componho em pura exaltação do amor

És o amor em si
Por isso amo o amor
És a presença
Por isso não vivo sem esta

És meu infinito que busca o seu começo
És um começo já dado, mas que pressente a sua verdadeira largada
Começaste breve, em oito dias
Retumbaste grave em um ano
E reverberarás por toda a minha vida.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Acolhida

Ele aproximou-se de mansinho
Sem nenhuma pressa para chegar
E se aconchegou tão devagarzinho
Que fui, distraída, deixando-o ficar

Por diversas vezes me prometi
Que não o deixaria ali demorar
O tempo passou... E eu não percebi...
Quando dei por mim, já era o seu lar

Dei àquele moço o espaço que queria
Ainda mais espaço lhe cederia
Se ele me pedisse, sem hesitar

Se eu quiçá previsse naquele dia
O quanto me agrada sua companhia
Jamais o teria deixado entrar

Soneto da madrugada

Por que és, por que és o fogo e as horas
Minha medida, sem medida em mim
Porque aqui, não ali, são meus agora,
Os teus passos sem abraços e fim?

Qual gesto, tu me deixas, se tu choras
Fecha os olhos e as mãos e o meu ruim
O que morre, senão morre ou demora,
O que arranco antes mesmo de ser sim?

Pela noite, dormes onde desperto,
E fugindo eu chego, quando eu te ouço,
Da luz ao longe a ti já estou deserto...

Com a lua invado teu calabouço
E contigo eu deito se eu estiver perto,
Te trazendo estrelas pelo meu bolso.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Medo de acordar,
Do frio da manhã,
Do calor seguinte,
Do peso do corpo.

Medo de deitar,
Do frio da cama,
Do calor da mente,
Dos sonhos.

Medo de chorar,
Do frio das lágrimas,
Do calor do rosto,
Do rosto corado.

Medo de olhar,
Do frio do espelho,
Do calor da luz,
De vencer...

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Poesia pra ele

Ah, Don Juan vagabundo,
que de olhar tão profundo,
me levou o coração.
E as palavras pouco claras.
Das canções mais raras,
domina o refrão.
Menino vadio, sem escrúpulos,
me deixou em seu mundo
levou todo o meu chão.
E depois, como quem logo esquece,
não que eu me interesse,
anda em outra paixão.
Pequeno, nem todo bonito,
provocou o meu grito,
E na garganta mil nós.
Mas por trás de todo esse teatro,
dois mais dois são quatro,
Estaremos a sós.
Pouco me importam as outras,
Teu molde sou eu e não cabe ninguém.
Na tua fôrma, só cabe meu corpo,
Minhas formas, meu rosto te dizem: amém.
Apesar de você,
amanhã ha de ser:
Eu sorrisos, você solidão.
Como o filho que volta pra casa,
cortarás tua asa
e trarás, coração.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

À cara de um sujeito dividido

De repente, no fim da tarde, ali estava eu: em pé, parado, pensativo e olhando para o nada; dentro de uma loja de operadora de celulares, dentro do shopping Center. Um tanto distante daquela realidade movimentada e iluminada, por uns minutos, pairei nas nuvens das idéias. Uma idéia leva a outra. A qualquer direção que meu olhar avidamente se dirigira, uma cena diferente me aturdia.


Ao lado, duas crianças manuseavam hábil e freneticamente uma espécie de Ipod tamanho gigante de última geração. Não sei o nome. É o ultimo lançamento. A novidade do momento. Alguns de vocês hão de sabê-lo.


Mais a frente, funcionários e vendedores. Todos com o mesmo uniforme. Apressados, atendiam telefones que tocavam sem parar; demonstravam aparelhos a clientes - com aquele empenho e obstinação inquebrantáveis característicos dos vendedores – no afã inexorável (que, aliás, deve custar-lhes uma bela fadiga quando tudo acaba) de convencê-los de que estão, sem dúvida alguma, fazendo a melhor escolha de suas vidas. Uma vendedora em específico se diferenciava dos demais. Esta chamou a atenção de meus olhos. Diferindo-se de todos (menos de mim), ela também estava parada e contemplando o nada com o olhar. Era como se tivesse desistido daquela correria e também tivesse percebido a loucura daquilo tudo, indo além em seus pensamentos. Um funcionário vestido em outro uniforme (mas também uniformizado!) – uma calça de linho e uma camisa de mangas compridas, mais social –, exibindo claramente aquela imagem que impunha sua superioridade ante aos outros funcionários, passou ao lado desta mulher peculiar e, com a tez da face contraída e a testa franzida, disse-lhe algo ao pé do ouvido. E ela, como que acordando de um sonho, voltou a se movimentar (apesar de que ainda tímida e vagarosamente).


Ao meu outro lado, duas mulheres. Clientes exigentes, pareciam. Uma reclamava qualquer coisa falando sozinha, talvez a demora em a chamarem pelo numero da senha, ou talvez a má qualidade do serviço como um todo. A segunda mulher brigava com alguém pelo celular. Dizia: “agora não dá, fulano... estou aqui nesta porcaria desta TIM contestando uma conta que veio errada. Pra nos cobrar e nos roubar eles são craques!”.


Naquele momento só meu de observador viajante – “só meu” por se tratar do devaneio mais profundo durante o momento mais corriqueiro da vida cotidiana -, em que tais cenas aconteciam lenta e silenciosamente para mim, quase chorei. Perguntei-me sobre o sentido desta vida. Aquilo era viver? E eu, que estava a fazer naquele lugar tão estranho e sem sentido? Eu fui ali para comprar um celular. Já fazia muito tempo que eu não saia para fazer isto, notei.


Tive o antigo aparelho celular sorrateiramente subtraído de meu bolso enquanto me debatia para livrar-me de um daqueles conturbados emaranhados de gente que se formam de vez enquanto nas noites de trasladação do Círio de Nazaré. O celular já era velinho. Era um senhorzinho humilde e modesto, de aparência bastante simples. Já conseguia me constranger um pouco diante dos imponentes, viris e pós-modernos que já apareciam freqüentemente nas mãos dos outros.


Constrangimento? Não seria um termo muito forte? Não é um tanto dramático de minha parte? Que seja. Quem foge à regra dos valores dominantes, naturalmente, tende à marginalidade. Talvez não seja nem um pouco difícil acabar se tornando um marginal na sociedade em que vivemos.


“Por causa de um celular alguém se sente deslocado? Aff... é muito sentimental!”. Será que refleti apenas sobre um celular quando, enfileirado e querendo um celular novo, me aturdi com a vida naquele fim de tarde? Creio que quem ouse não acompanhar o marasmo das novidades do consumo – do gozo inalcançável -, quem não ingressa neste espaço virtual (virtual porque, concretamente, sabemos que apenas muito poucos gozarão de tais gozos), parece estar fadado a uma espécie de anacronismo e, portanto, de marginalidade.


Voltado à loja: de repente, eu estava à frente de um enorme e extenso balcão de vidro, no qual havia dezenas e dezenas dos celulares mais sofisticados à exposição. Os mais diversos modelos e cores, todos brilhando e repletos de botões (tais como teclados de computador em miniatura). Precisava escolher um. Como? Aquilo era um bombardeio de estímulos, um mar de possibilidades. Era um convite a me deixar ansioso, a me deixar ouriçado olhando tudo e a não saber escolher. Eu ficaria agitado bisbilhotando a tudo – de aparelho em aparelho, apertando o maior numero de botões possível, conhecendo o maior numero de funções e aplicativos possíveis – e no final não saberia escolher, com uma sensação de vazio... de que não vi tudo... de que não aproveitei todas as possibilidades que esta vida das “liberdades” poderia me oferecer.


“Escolha” e “vazio”: palavras muito atuais[1]. Parece-me que uma das nossas grandes dificuldades neste novo mundo - que “nos oferece” infinitas possibilidades de prazer - é a de renunciar. A grande dificuldade que sentimos é a de aceitar as perdas, a de aceitar que a vida é marcada pela incompletude (incompletude, que nossos antepassados, em condições materiais mais precárias, sabiam lidar melhor). Seremos eternamente faltosos. A morte (no seu sentido amplo) não nos escapará. Ter a sensação de que estamos perdendo algo parece mais terrificante do que nunca. A sensação estranha e familiar de que tivemos algo que foi para sempre perdido sempre nos perseguiu perenemente (e sempre nos perseguirá). Porém, hoje nos munimos de um monumental arsenal de armamentos efêmeros para completar o que(?) está faltando e assim aliviar nosso psiquismo: medicamentos (para tudo), auto-ajuda, entretenimentos, pessoas, sexo, art pop, tatuagens, cirurgias plásticas, cinema (aqueles que nos dão “tudo mastigado”), celulares. É consumindo tudo isso e muito mais – objetos que se desvanecerão rapidamente (por isso são efêmeros) - que temos procurado desesperadamente tapar esta espécie de buraco que nos constitui. Por serem passageiros – aliviarem passageiramente nosso mal estar – precisarão ser substituídos rapidamente. O Capital agradece!


Se não pararmos para nos perguntar sobre o nosso mal estar e produzir sentidos mais efetivos para eles, permaneceremos como marionetes, escravos da lógica do consumo, no qual as marcas maiores em nossas subjetividades são a ansiedade, a violência e, principalmente, o vazio existencial. Não nos damos conta de que apenas ficarmos dizendo “Estamos no século da depressão, vamos procurar levar uma vida mais saudável” é algo um tanto vago (para não dizer frívolo e patético). Este clamor por uma vida mais saudável parece apenas esperar que a indústria psicofarmacológica trabalhe dobrado e nos ofereça mais remedinhos que nos deixem dopados e calminhos para continuarmos sem refletir sobre nossos males, nossas perdas, nossa sociedade, nossa vida.


Naquele momento, na loja, sufocado, oprimido e aflito – em meio aquele frenesi; aquela multidão; aquelas luzes todas; aquelas pessoas, que num balanço geral, são mais carentes e desalentadas do que felizes (por mais que se movimentem muito) – eu precisei filosofar. Eu precisei parar e pensar algo para além do que eu via. Pensei nessas bobagens que aqui estão escritas.


Também sou um sujeito dividido. Não estou fora deste mundo. Divido-me entre dançar conforme a música cantada pelas leis perversas que regem este mundo - desejando seus objetos sedutores de consumo – como sempre me ensinou meu Pai; ou, por outro lado, derrubar meu Pai, revolucionando esta história, perseverando nesta caminhada mais árdua de revoltar-se e inventar o futuro. Aos que, como eu, revoltaram-se contra seus pais, creio que um primeiro passo é reconhecer que eles – nossos pais - estão em nós mais do que imaginamos. Eles estão em nós independentemente da nossa vontade consciente. Gostaria que esses pais fossem entendidos não apenas em sua literalidade. Nossos pais: uma tradição moral que nos atravessa, que está arbitrariamente corporificada em nosso ser.


Na loja, estive em conflito por ser dividido. Em conflito porque, ali, olhando para os celulares, me deparei claramente com uma realidade difícil para mim (difícil de aceitar): tenho um fetiche pelos celulares. Eu os desejo. Possuí-los e exibi-los é simbólico, é obter um prazer extra-biológico. É fazer questão de mostrar que tenho um bem privilegiado; e que, portanto, possuo poder e luxuria sobre os outros seres humanos. Isto é horrível. Horrível para mim, um garoto tão correto e humanista. Culpei-me. E isto, só percebi agora: escrevendo, pensando. Naquele momento, apenas um mal estar. Desejando o símbolo do poder, eu parecia com o meu velho e odiado pai.


Ante a todas aquelas possibilidades expostas ao meu fetiche naquele enorme balcão de vidro, escolhi. Em pleno século XXI consegui renunciar (pelo menos, achei que havia conseguido) e escolhi. Comprei um celular de última geração: internet, redes sociais, 2G de memória, câmera de foto e vídeo, lanterna, jogos, aplicativos, entrada para dois ships, bluetoof, e muito mais.


Isto me matou. Violentei-me. Chegando em casa, não consegui viver paz olhando para aquele celular. Dois dias depois, voltei à loja e o devolvi. Eu não poderia me render assim, mesmo desejando. Desejar o proibido é o que mata. Voltei mais leve para casa, me dando um tempo - sem celular! - para escolher outro. Ainda não escolhi. Mas terei de escolher. Talvez não seja nem um tão humilde e nem um tão imponente, e sim um mediano: a minha cara. A cara de um sujeito dividido.


[1] Se meus interlocutores não quiserem aceitar com certa universalidade o que contarei agora, tomem minhas palavras a seguir apenas como bobas confissões pessoais, mesmo eu me exprimindo na primeira pessoa do plural.

sábado, 8 de outubro de 2011

Homem, Mundo

Ah, Deus

Me orgulho dos vastos céus sem azul

Dos mares agitados e sem piedade

Das terras chacoalhantes e indignas


Me orgulham também as flores mansas e inocentes

O asfalto negro e resignado

As arvores que questão nenhuma fazem de se mexer


Assim me regozija a paixão

Sem calma nem paciência

Sem imagem nem decência


Da mesma forma o amor

Paciente e desprendido

Sem avidez nem possessão

Lento e etéreo como os ventos


Somos seres como a natureza

Violentos e pacíficos

Ingratos e agradecidos

Subjugados a dor e a alegria

Eivados por esperança e desespero.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Versos de Clara

Fácil falar do amor em dor

Em pêsame

Em perda

Em separação


Mas teu amor em mim

Se mostrou mais que tudo

Mais que um dom

Mais que uma memória

Mais que um professor


Caminhando pela seara do meu desconhecido

Contemplo minha razão

Meu troféu solitário

Em completa balburdia

Em decomposição


Substituíste meu frio pensar

Pela alegria dolorida da emoção

Pelo amanhecer do meu amor por ti


Ainda inclino a cabeça para ver-te

Como o lobo que se curva para ouvir o vento

Freando meu pensar

E dando força ao gatilho do que me infesta

Ao refeitório lúcido do meu amor


És minha refeição

Meu pão diário

Aquilo que não pode me faltar

O incisivo golpe que cega

E a soberana ordem que dá vida


És o nascer e o renascer meu

O intuitivo modo de abrir os olhos

O involuntário ato de respirar


És um verso claro

Límpido e transparente

Que parte de mim

Da minha boca

Das minhas letras

E toma o mundo com a autoridade da tua beleza


Ah, meu bem

Te vejo como a flor

Que não padece sob o outono criminoso

Te vejo como a morte de todo ímpio

Como a extirpação de toda a minha iniqüidade


Me permites equilíbrio,

Sobriedade e felicidade

És meu começo e minha metade

Minha fartura e minha falta

Minha luz e meu pensar


És o beijo do vento em meu rosto

Meu amor em paz composto

Minha fatia de divindade

Teu amor por mim me invade

Me toma e me agracia

Me permite o sacrifício dos meus erros

E a premiação dos meus acertos


É o coração jovem que bate ruborizado

Em plena atividade de vida

O organismo que nunca padece


És parte mulher e parte inverno

Parte menina e parte calor

Parte de mim e parte de tudo

Pois parte de mim para ti

Meu amor, meus versos, meu mundo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Sofia

Me tira o ar, a luz e a flor
O meu carinho e a promessa
Um pedaço de toda dor
Onde que tudo começa?

Me tira o pão, a alma e o amor
Qualquer lua que eu peça
Algum minuto incolor
Onda estará minha peça?

Assim eu vou me partindo
Assim eu vou te chegando
De alguma forma te pedindo

De alguma forma te chorando
Perguntando por que seguindo?
Sem saber --- por que te amando.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Tua cor marrom

Estupefato em necessidade

Assim me acho

Perdendo-me em ti

Nas tuas falanges de alegrias

Nas tuas guerras de lagrimas


O alibe do teu sofrimento

Por vezes é meus olhos mansos

Em calmaria profunda

Contemplando-te em indecisão


Ah, meu bem,

Essa tua cor marrom

Esse teu corpo febril

São as marcas da tua humanidade

Daquela que mesmo em fúria não perdes


Tens a peçonha do ser humano

Sem perder a santidade da carne


És o pão que nunca me pode faltar

O resto de homem que ainda possuo


O branco dos teus olhos

Escondido atrás do teu negro olhar

São a hipnose do meu observar


E assim sigo a vida

Em ti

Em mim

No mundo


No mundo cruel e perfeito que vivemos

Na vida mansa e infinita que fazemos

No amor imperfeito que forjamos

E banhado no pecado dos corpos.

domingo, 14 de agosto de 2011

A menina e o espelho

 
Moça à Janela - Salvador Dalí

Quando a vi, ela estava ali, parada, em frente ao espelho. Ficava assim, mirando-se eternamente, sem admirar o que via, procurando algo sem saber o que queria. Esfregava as mãos contra a própria face, desistia. Seu próprio rosto era, naquele momento, um absurdo em forma de rosto. Novas rugas, peso, marcas, estava disforme, desconforme o traço que moldava para si mesma sob o peso pungente de sua dor. A menina olhava o espelho e não se via. Ou, quem sabe, encontrava algo indizível, que não queria admitir para si mesma, uma imagem translúcida, que num sem-tempo, tornava-se assustadoramente verdadeira.
Quantos anos ela tinha? 60, 50, 20? Que importava? O tempo passava para todas elas, para todas as mulheres que moravam e habitavam dentro da menina que agora cultuava o espelho, como quem alimenta um monstro insaciável. Sustentava-se com as duas mãos sobre a pia, concentrando-se em algo que o reflexo deixava sempre escapar. Vez por outra, soprava suas mechas, como quem quisesse dizer estupefata: “não, não está nada bom”, era sua forma de dizer que estava cansada. E então se virava de lado contando gorduras e apalpando os seios, na tentativa de quem sabe levantá-los um pouco mais. Tempo, gravidade, saco, bucho, tudo a puxava para baixo, era a melancolia do indizível, sobre a qual nem mesmo o luto ousava repousar. Ficava assim mesmo, ferida aberta, peito aberto, aberto o tempo que ao contrário dos pensamentos que iam e vinham, apenas se ia, cada vez para mais longe, levando consigo o resto de familiaridade que a menina encontrava diante de si enquanto alimentava o monstro do espelho.
Ela sentia um peso gigante derramar sobre si. Uma represa rompendo, água caindo, dedos se movendo, olhos se movendo, algo se movendo impunemente, como que em sua direção. Seus olhos duros não deixavam que escorressem as lágrimas. Eram duas pedras que não se permitiam furar, deixando vazar apenas a dor que carregava, uma dorzinha seca, a dor de não sentir que seu próprio corpo, mesmo quando estava completamente a sós com ele, era realmente seu. Não se podia dizer que era por causa de minha presença. Na verdade, ela jamais me notara. Mas eu, mesmo assim, ficava ali, por horas e horas, contando seus suspiros e ares de pesar, como quem acompanha os passos da amada pela noite, e vela pelo sono respirando cada um dos sonhos que ela tinha para contar. Quisera eu dar-lhe ao menos um beijo, a conduzir na noite e mostrar-lhe o quanto ela era bela e o mundo somente uma ilusão. Mas o espelho era ainda mais forte, ele sempre me vencia, o espelho a massacrava e não havia nada que eu pudesse fazer. Ela então culpava sua sina e eu pensava que a menina que eu tanto amava não queria mais viver. Ela queria ver derramar o sangue, seu corpo parado, o sangue correndo, o movimento esplêndido da vida que se esgota passo por passo, gota por gota. Se ao menos eu pudesse tocá-la! Mas ela queria ver a vida esvair-se, da mesma forma que via as folhas mortas caindo lentamente do lado de fora de sua janela. Morreu de tão bela, gravaria eu seu epitáfio, roçando o gosto da terra, procurando sua vida. Mas beleza era uma palavra maldita agora, uma invenção que vinha de fora e não a deixava mais dormir.
De onde viram esses olhos sobre o corpo? Essa pressão irresistível? Essa cobrança que fazia sobre si mesma, sabendo que não a desejava e que jamais iria cumprir? Ela agora tentava esconder o corpo com braços e mãos, tapando o ventre, o sexo, ocultando-os do mundo que cobrava, segundo ela mesma dizia, um corpo que não era o seu. Enrolou-se na toalha lentamente, como quem se enrola numa casca de fruta madura. Tentava sentir seu próprio cheiro. Lembrava-se então das outras mulheres, mais magras, mais belas e atrevidas e pensava por que raios não poderia ser como elas. Então achava rugas, marcas, toiços, tudo, traços borrados de seu retrato, pintado por um artista sonso que fora embora, sem jamais concluir seu trabalho.
Ela sabia que queria ser só dela, ter um tempo consigo mesma, fugir para um país distante ou quem sabe arranjar alguém que não ligasse para tais coisas. Mas será que ela mesma sabia quem realmente era? Por que não podia ser como sonhara? Queria romper com o mundo. Queria o mundo só para ela. Queria se reconciliar com o mundo. Amava e odiava a um só tempo, turbilhão alado, anjo caído. Bruxa! Era uma bruxa. Dobrava a cabeça baixando o os olhos e, logo, logo era uma criança pedindo colo! Fazia poses e rebolava na frente do espelho, passava a língua levemente pelos lábios, agora, ela era gostosa. Um segundo depois, desistia de tudo, bagunçava os cabelos e jogava-se no chão do banheiro. Já não era mais nada, era apenas a sensação do frio do granito pairando sobre o ar. Era rosto contra o chão, martelo contra a cabeça, pensamentos que voavam tentando se libertar. “Sensações não têm corpo, penetram na alma das mulheres e reinam soberanas sobre a razão que se encolhe tímida num canto diante da força do sentimento bruto”. Como ela queria usar mais a razão às vezes! E quando pensava nessas coisas, batia uma certeza, queria ser suas próprias sensações. Sentimento sem corpo, força sem culpa, leveza forte sobre a alma alheia. Sua raiva, sua inveja, sua ira, seu gozo interrompido, sua marca de batom. Suas lágrimas... Onde estariam elas agora? E, de repente, aí estavam elas. Punha-se a chorar.
Ouvia-se um barulho vindo lá de fora. Tanto pior, o mundo lá fora era a vida que passava, o tempo que batia com força, martelando em sua cabeça, fazendo aparecer mais marcas sobre o corpo estranho, fazendo com que ela mesma se marcasse ainda mais, a ferro, fogo, brasa ou com suas próprias unhas, num rompante violento de quem tenta livrar-se definitivamente de um corpo que não lhe pertence mais. Pobre menina! Sua janela era como um véu que jamais tirava, através do qual e somente do qual ela observava o mundo de fora, numa penumbra sempre acinzentada. Por um segundo, ela pensava em acabar com tudo! Mas não. Havia uma pulsão estranha que a puxava para a vida, vida-sobre-morte, uma distância indizível, um eterno flertar com o abismo. Entregava seu corpo mais uma vez, produzia-se, dançava, transava, eventualmente, gozava, senão fingia, mas não queria mais fingir. Ouvia um barulho, um barulho diferente, algo acontecia, e então moveu seus olhos de pedra do espelho à janela, para assim poder conferir através do véu o que acontecia.
Uma multidão passava agora em sua rua. Em sua maioria, eram mulheres que cantavam e marchavam, descompassadamente, num misto de raiva e alegria, paz e violência com traços divinos, uma linguagem que ela, folha morta, traduzia apenas como vida. Ela via vida. Lenços laranjados, bandeiras cor-lilás, tambores que rufavam, mãos que aplaudiam.  A folha amarelada que já se ia caindo, parou sobre o ar, parou para ver a vida. Gostou. Queria viver também. Aquelas mulheres protestavam contra tudo, para umas era a violência, para outras o preconceito e havia ainda aquelas que nem se sentiam tão oprimidas assim, mas só vinham por causa da cerveja. A menina sorriu e, por um instante, achou que talvez ela e o tempo, que tantas vezes se cruzaram e se bateram, podiam afinal ser amigos. Sentia ali, que, de alguma forma, também fazia parte desse tempo.
Uma energia até então desconhecida, tomou de assalto o seu peito. Era um desejo que não tinha nome, uma força indomável, que lhe percorria o corpo e fazia-lhe tremer os lábios. Quem um dia já sentiu esse desejo, essa força, de modo tão forte e irresistível, não pode jamais comunicá-lo, mas transpira-o por todos os poros. Assim ficou a menina. Ela respirou lentamente, tomou fôlego e foi se arrumar. Pouco tempo depois, displicentemente, desceu apressada e se juntou à multidão. No meio do caminho, notou que muitas carregavam faixas, com dizeres e protestos, e quis dizer algo também. Ela que não entendia nada de movimentos e odiava política, de repente, sabia que, sim, tinha algo a dizer. Não sabia nem se era importante, talvez até rissem dela. Que rissem! Agora era fera selvagem, potente, indomável. Seria alegria fugaz de carnaval, catarse, utopia, o começo de uma nova vida ou simples explosão que terminaria, como tantas vezes, na depressão do dia seguinte? Ela não sabia dizer. A menina gritava, chorava e xingava os carros que passavam. Entre mensagens militantes, frases fortes e rompantes, ela também carregava um pequeno cartaz que acabara de confeccionar, ela mesma, pelas próprias mãos. O que ela queria dizer com aquilo, eu não fazia a menor idéia. “Espera menina!”, gritava eu. Mas estava ficando para trás. Ver a menina naquele alvoroço era como vê-la em uma plataforma de estação, pegando um trem que eu sabia bem nunca mais voltar. Já dizia alguém que o mesmo trem da chegada é o trem da partida. Aquele partia, sem nada me trazer de volta. Depois de tantos anos via, enfim, a menina partir de mim. As palavras que ela carregava em seu cartaz, eram como que palavras de adeus, não havia mais espaço para mim na vida dela. Não sabia dizer o que sentia. Não estava feliz, nem triste, talvez ternamente desconcertado. Mas ao ler aquele cartaz, senti que penetrei como nunca naquele pequeno e apertado coração, coração que perseguira por todos estes anos, sem nunca achar vestígio. Em meio à Multidão, ele finalmente veio à tona, como se fosse esculpido com o martelo da luta, ou revelado com a ternura de um grito. Jamais saberei o que dizer, a não ser que, naquele momento, cheguei a tocar a sua alma. A força daquelas palavras me dizia, com a resignação de um Carlitos Vagabundo, que eu não tivesse medo e então essa mesma força tomava minhas mãos em pantomima e me conduzia tirando-me os pés desbotados do chão. Ela me levava lentamente à alma selvagem que agora surgia como a lótus da lama de tristeza, que por todos esses anos a menina remoía dentro de si. Seria o adubo da vida que se faz cortejando a própria morte? O pequeno cartaz, pintado em tinta verde e rosa, já se escorrendo, dizia apenas assim: “deixe-me envelhecer em paz”. 


David Carneiro, Agosto de 2011

domingo, 7 de agosto de 2011

Comigo

Parecer comigo é insuportável

Mas é assim mesmo: inegável

Que a dor em mim

Seja a dor nos outros

terça-feira, 12 de julho de 2011

Humilhados e Ofendidos: A lei e a justiça em Dostoiévski e Derrida

          

            O personagem escritor do romance de Dostoiévski, sempre preferiu pensar em suas obras e sonhar como as escreveria do que escrevê-las de fato. Parece que entre a imaginação e a linguagem sempre há um abismo intransponível. A mesma coisa parece ocorrer no momento em que escrevo. Fechar a leitura de Humilhados e Ofendidos sob a perspectiva e a presença do da lei e da justiça na obra é reduzir infinitamente seu escopo. E, no entanto, ainda que sob o efeito de um sinuoso deslocamento, o tema da justiça parece transpirar no decorrer das páginas da obra. Aliás, talvez a justiça só seja mesmo possível sob a eterna tentativa de captura dos deslocamentos sob os quais sua possibilidade vez  por outra emerge diante de nós.
            Vânia, escritor pobre e fracassado, vivendo problemas amorosos e financeiros, não lembra a cisão profunda da alma encontrada em um Ivan Karamazov (Irmãos Karamazov) ou num Raskólnikov (Crime e Castigo), tampouco a vocação quixotesca do Príncipe Mítchkin (O Idiota) ou a beatitude de um Aliocha (Irmãos Karamazov). Longe de representar a profundidade psicológica que marcaram os personagens do autor em sua maturidade, Vânia revela sua personalidade aos poucos, do mal-estar do escritor que não cabe mais em si à expressão humana do encontro místico com o Outro. Aliás, mesmo advertindo não ser místico, Vânia sabia que o que aconteceria dali pra frente seria mesmo “extraordinário”. Talvez seja justamente o desabrochar modesto do personagem durante a obra que realce a simplicidade que contém o sentido místico de seus atos. “Nada há que já não esteja revelado”.           
            Já de início, o herói depara-se com a cena de um velho e seu cachorro, ambos maltrapilhos e moribundos, sendo hostilizados em uma confeitaria onde haviam entrado para se aquecerem. Não demorará muito, após a morte do velho, para que o escritor conheça Elena, a neta do falecido, entregue à própria sorte e sujeita a todo o tipo de humilhações depois que sua mãe fora rejeitada pela família. Aos poucos, Vânia torna-se protetor da menina.
            Vânia também vê a antiga família na qual fora criado, dissolver-se em meio a privações, intrigas e paixões. Sua amada Natacha apaixona-se perdidamente por Aliocha, o mimado e ingênuo filho do Príncipe Valkóvski, este último responsável pela ruína da família de Natacha. Contrário à união do filho com a herdeira de seu inimigo, uma moça pobre e sem posses, o Príncipe faz tudo para humilhá-la, até separar Aliocha definitivamente dela.
            O Príncipe, na obra, acaba emergindo como o antagonista dos humilhados e ofendidos de Vânia. Com o intento de gozar infinitamente de seus prazeres e da riqueza, o Príncipe não mede escrúpulos ao passar por cima de toda e qualquer pessoa, mesmo que isto signifique arrasar cruelmente com suas vidas. Ainda resquício de um certo maniqueísmo de Dostoiévski em sua primeira fase, o Príncipe Valkóvski não deixa de ser um personagem interessante. E é através dele que a questão da lei vai penetrar na obra. Esta é sempre invocada como a força que pode insurgir-se para fazer valer a convenção, ainda que sua injustiça seja patente a qualquer sensibilidade humana:


“Ela tem de me agradecer só por eu não ter agido contra ela como se deve, pela lei. Saiba, meu poeta, que as leis protegem a tranqüilidade da família; elas garantem a obediência do filho ao pai e aqueles que desviam os filhos das obrigações sagradas aos pais não são incentivados pelas leis”.


            Natacha desafiou a tradição de sua sociedade, sua família e a própria lei para viver sua paixão por Aliocha, paixão, que ela sabia desde o início, poder levá-la à ruína. Privada de todo e qualquer recurso financeiro e de influência junto às instituições, temia ser esmagada pelo poder do Príncipe, que, mesmo sinalizando com movimentos de paz, não demorou a revelar seus verdadeiros intentos:


“E não sabe que deveria me ser agradecida: já há muito tempo que eu poderia colocá-la numa casa de correção, sendo pai do jovem o qual a senhora estava corrompendo...”.


            O discurso onipotente do Príncipe calcado em suas posses e influências recorre ainda, mais uma vez, à força da lei. Uma força marcial, pronta para ser direcionada contra os humilhados e ofendidos, pelo recurso à tradição não refletida, que acaba por travestir-se em recurso instrumental nas mãos do inescrupuloso Príncipe. Seria este o caráter próprio da lei? Pelo menos, pode-se dizer que ela sempre aparece desassociada de um senso de justiça que a sua própria legitimidade deveria promover. Maslobóiev, rábula amigo de Vânia, explicou a este, por exemplo, que faltou apenas um bom advogado para que o pai de Natacha vencesse uma demanda judicial contra o Príncipe, demanda na qual, a boa razão demonstrava que a boa fé do velho era patente.  Na letra fria e obscura da lei, distante daqueles que clamam por justiça, vale mais o conhecimento dos procedimentos e o uso da influência, que se sobrepõe a todo o clamor humano contra a privação dos bens e da dignidade mais essencial ao ser humano.
            Talvez uma análise mais pobre ou apressada, buscasse vincular a idéia de lei no pensamento de Dostoiévski a uma eterna identificação com a lei do mais forte ou dos “poderosos”, como se esta fosse apenas o recurso externo de um poder coeso, pronto para ser mobilizado com o intento de manter sua auto-reprodução. Este tipo de análise ainda que não seja, em certas condições históricas e sociais, totalmente destituído de sentido parece pecar pela generalização e por não considerar que o que pode estar em jogo é uma relação bem mais complexa. Ao identificarmos a lei, esta lei, com a lei dos poderosos ou de uma classe em particular, surge-nos, inevitavelmente, em oposição a figura de uma outra lei, ou sua abolição completa, por meio de uma “justiça revolucionária”. Se seguirmos, no entanto, os passos do autor e sua obra, sabemos ser este um caminho improvável para Dostoiévski, crítico implacável dos movimentos ditos revolucionários no século XIX.
            Uma outra hipótese precisa ser testada. A justiça aqui, ou simplesmente o apelo a ela, parece insistir que sua aparição possa se dar por outros caminhos que não o da engenharia social reformulada. Pode-se adiantar, no entanto, e talvez com certo grau de obviedade, que o direito não se confunde com a justiça. Na interpretação do místico Berdiaeff acerca da Lenda do Grande Inquisidor (Irmãos Karamazov) é justamente a engenharia social de qualquer tipo que Dostoiévski parece negar com todas as suas forças. “O socialismo é o papismo secularizado”, já diria o místico russo, rejeitando de uma só vez o exercício do poder temporal da Igreja e as novas doutrinas sociais, ambas representantes, segundo ele, da negação da liberdade contida no exemplo do Cristo diante da figura do Grande Inquisidor. Na dialética do espírito de Dostoiévski, como lida por Berdiaeff, é impossível ser livre e feliz ao mesmo tempo. A felicidade seria a forma racional de organizar a sociedade, o “eudemonismo social”, a própria lei, seja conservadora ou revolucionária, enquanto a justiça, o movimento do espírito rumo a liberdade, seria somente possível em face ao rosto do Cristo.
            Vânia sentia um desconforto profundo com a cidade grande, sua hipocrisia e suas desigualdades. Mas não parecia insurgir-se de modo algum contra a “ordem estabelecida” de modo a identificar as opressões ali vividas a algum tipo de ordem em particular. Por vezes, pode-se dizer até que coadunava com as tradições do seu tempo, como na aceitação de sua impossibilidade de casar-se com Natasha por falta de dote ou contra as vicissitudes comerciais de seu editor, pobre homem que em sua opinião estava apenas cumprindo o seu papel na sociedade. Porém, há algo que intriga em Vânia. De seus atos surgem uma infinita compaixão, que não se dirige à sociedade, mas não hesita em insurgir-se contra ela, não em nome de um sistema social, mas em nome de uma compaixão infinita que conduz inexoravelmente ao Outro.
            Não estaria aqui presente a possibilidade da justiça levantada por Jacques Derrida em seu “Força de Lei”? Derrida também nega, contrariando certos autores das “escolas críticas do direito”, uma definição da lei necessariamente como poder exterior mobilizável por uma classe, mas defende que o momento instituidor e justificador do direito contém em si mesmo uma violência performativa que não é justa e nem injusta por si mesma, que se mantém e se institui por uma boa dose de crença. Se o direito sustenta-se então por um tipo de crença e não por ser justo, onde estaria então a justiça?
            Para Derrida, a justiça é uma aporia. A justiça é uma vontade,  a justiça é um apelo à justiça. O problema surge porque o direito é um elemento de cálculo. Para Derrida, é inclusive justo que haja um direito, mas a justiça é algo em si mesmo incalculável. A decisão entre o justo e o injusto nunca é garantida por uma regra. Para que se garanta a justiça, é preciso que se olhe para as singularidades, grupos e indivíduos que em suas próprias existências são insubstituíveis. Neste raciocínio, a justiça já não se garante por leis universais, mais aqui e agora, no presente concreto, diante da injustiça concreta. Para fazer valer suas reflexões, o autor defende ainda sua ferramenta desconstrucionista, que, para ele, longe de representar um niilismo como querem alguns de seus críticos, recorre a uma responsabilidade sem limites diante da história memória e da história da justiça, denunciando seus limites teóricos e injustiças concretas, recorrendo ainda à própria responsabilidade e justeza de nossos atos frente a justiça.
            Conforme avança em seu raciocínio, Derrida aproxima-se da noção de justiça presente na obra do filósofo judaico Levinas. Para este, “a justiça é a “direiteza da acolhida feita ao rosto”. A base da justiça não é mais “o conceito de homem”, mas o de outrem: “a extensão do direito de outrem” é a de “um direito praticamente infinito”. A equidade não é mais igualdade, proporcionalidade calculada, mas a dessimetria absoluta. A justiça, como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acontecimento e a condição da história.
            Neste momento, a reflexão trazida por Derrida aproxima-se inesperadamente de Dostoiévski. Há um apelo concreto e infinito a um sentimento que se opõe a lei, mas que em certos momentos demonstra-se tão óbvio e poderoso que já não se pode duvidar de sua força e verdade. Este sentimento não pode ser deduzido de leis ou princípios universais, mas é encontrado na compaixão profunda que se dirige ao Outro. Estariam aqui Derrida, Levinas e Dostoiévski unidos pelo cordão umbilical que os liga aos primórdios da tradição judaico-cristã? O que mais ela poderia nos ensinar em termos de justiça? A lógica dessa compaixão, ou seu caráter ilógico frente as convenções estabelecidas, emerge curiosamente no austero e impiedoso pai de Natacha, ao perdoar e acolher a filha de volta à casa, com o perdão infinito de quem acolhe o pródigo. Aqui, não por acaso, o discurso é dirigido diretamente a Deus:


“Oh, agradeço-te, Deus, por tudo, pela tua ira e pela tua graça! Pelo teu sol, que brilhou agora, depois da tempestade, sobre nós! Por todo este instante, eu agradeço! E que sejamos humilhados, que sejamos ofendidos, mas estamos todos juntos novamente, e que triunfem agora esses altivos e arrogantes que tinham nos ofendido e humilhado...Não tenha medo Natacha....Nós iremos de mãos dadas e eu lhes direi está é a minha filha querida, minha filha amada, minha filha inocente que vocês humilharam e ofenderam, mas que eu amo e abençôo eternamente!”


            A força fenomenológica deste tipo da expressão da justiça é poderosa demais para ser botada em questão. Resta saber quando realmente estamos diante dela e não apenas agimos em seu nome. É preciso investigar sua origem, seus rastros, descontinuidades e contradições ao longo da história. Aliás, resta-nos ainda perguntar como a noção de justiça, como aqui posta, pode se articular com o direito necessário. Não haveria justiça nos próprios sistemas sociais ou, pelo menos, uns que permitam mais a promoção da justiça do que outros? Ou seria esta simplesmente uma forma equivocada de colocar a questão? Reflexões como estas parecem durar uma vida toda. O fato é que sempre teremos Humilhados e Ofendidos em nosso caminho, clamando por uma justiça que deve ser feita aqui e agora.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Conversa de amigo




As luzes da cidade batiam contra os meus olhos distraídos. Sentir aquela luz nas minhas pupilas restaurava a consciência do meu estar naquela cidade desconhecida que, aos poucos, ia tomando como minha. Na boca, um cigarro, passos lentos como sem dono, andar sem motivo, procurando quem sabe tragar a hora e deter o tempo alvissareiro que passava diante de mim como um trem veloz. No bar, o amigo esperava.
Sentei-me lentamente, botando os cotovelos sobre a mesa. Pedi uma Germana, como de costume e perguntei ao amigo sobre a família e a vida, mas não prestei atenção na resposta. Há uns dias, eu já estava completamente imerso em meu próprio mundo, ainda me impregnava nas roupas e no pensamento o perfume que ela deixara em minha cama antes de partir.
Meu amigo percebeu que havia algo de errado comigo, perguntou-me de que se tratava, mas eu não pude dizer uma palavra sequer. Comunicar aquela lembrança era como desmanchá-la diante dos meus olhos. Ela era para mim como um sonho que não podia ser contado, uma fábula de um reino desconhecido, guardada em um baú de avô ou dono de sebo, como uma relíquia que não pode vir ao mundo sem se perder por completo.
Depois da terceira dose de cachaça, permanecia imóvel segurando a cabeça com o punho esquerdo. Na mão direita um cigarro, cotovelos sobre a mesa, mais um amigo se juntava a nós. Eu, no entanto, com a garganta lavada em aguardente, sentia apenas a saudade escorrer através dos olhos. Eram as lágrimas da distância que pediam passagem, lembrando-me do dia em que estava tão perto dela que se fechavam meus olhos ao simples toque de sua pele alva.
Depois de alguns meses separados pela vida, voltei a me encontrar com ela em uma noite cinzenta e chuvosa. Não sabia se depois da distância, ela ainda nos via como os amantes que fomos outrora. Foi então que veio o abraço apertado, o sorriso rasgando o rosto como uma represa partida e o toque das bocas que se beijavam e mordiam como se precisassem desesperadamente uma da outra.
Já era tarde. A cidade inteira estava vazia e nada mais restava a fazer senão aquilo que queríamos fazer desde sempre. Levei-a para a minha casa. Ela logo se deitou em minha cama. Entre as colchas e travesseiros, seus gestos de vergonha e preguiça transformam-se em valsa para os meus olhos, como se cada movimento daquele corpo fosse executado com a graça da mais solene das bailarinas. Foi quando eu a contemplei com ternura e aquele fogo que ardia em meu corpo, sem desaparecer, deu vazão ao terno encantamento de ter aquela mulher em meus braços. “Rolou ou não rolou?”, perguntariam meus amigos, mas para mim, naquele momento, aquilo simplesmente não fazia sentido. Sentia que compartilhava com aquela mulher um milagre profundo no qual o sexo certamente era parte, mas a parte de um todo que era muito mais que sexo. Um todo que não estava em mim e não estava nela, mas num ponto eqüidistante de nossas saudades, que nos impeliam irresistivelmente na direção do outro.
Ao vê-la ali, deitada em minha cama, contanto qualquer história triste de sua vida solitária, abraçava aquele corpo como se o quisesse colá-lo para sempre junto ao meu, para que todo aquele sofrimento transbordasse também sobre mim, para que eu pudesse então, quem sabe, purgá-lo em consolo e poesia. Ela estava quase dormindo, mas a cada beijo meu podia ver um sorriso de contentamento irromper em sua face. Era uma leveza profunda que eu sentia e ela também sentia. Não havia tempo e nem mundo lá fora. Havia somente os nossos corpos, uma história sem enredo que se bastava por si, onde o início e o fim convergiam, da mesma forma que convergiam os dedos que se entrelaçavam e os nossos pés que se cobriam. Dormir com aquela mulher, foi como compartilhar o mais genuíno de mim, minha solidão temperada com afagos de infinita ternura.
“Sabe, camaradas”, começou um de nossos amigos, interrompendo minha longa digressão solitária, “vocês podem até estranhar, mas vou te dizer. Ontem transei com uma mulher e ela acabou dormindo em minha casa. Que terrível acordar com alguém que você não conhece. De manhã, queria que ela virasse um pedaço de pizza ou, quem sabe, um garrafão de água”. “Pelo menos, comeu!”, respondeu o outro, “tem gente que deixa pros outros fazerem o serviço”. O colóquio que passou a ser travado destoava tanto das lembranças que eu agora remoia, que o fato não deixou de ser irreverente para mim, mas quanta verdade não havia nele! Passei a interagir timidamente com meus camaradas, mas no fundo, minha expressão grave e taciturna valia mais do que qualquer palavra. A conversa de amigo, alguém já disse, se dá, aliás, no tipo de silêncio que somos capazes de compartilhar do que em qualquer palavra proferida.
Ao comentarem sobre o meu ar grave e taciturno, meus amigos falavam baixinho entre si: “é mulher, com certeza que é”. E eu ria mais uma vez, pensando no trecho de um livro que lera na véspera e como nossa conversa de amigo me levara a fazer a descoberta, que para mim valia mais do que qualquer teoria científica. Pensava agora, no pequeno trecho do livro, que dizia com toda a justeza: “o sono compartilhado é mesmo o corpo de delito do amor”.