Prosas, poesias, pensamentos e críticas.
Uma tentativa de divulgação e produção de literatura na Amazônia no séc. XXI.
Uma literatura amadora. É verdade. Mas feita por amigos que são amantes (amadores) destas terras.
Todos são bem-vindos neste espaço.
Espero que gostem.
Ricardo Evandro S. Martins.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Pensar com os corações suspirantes
Lógica emocional alem da conta
Oceano de razões
Poço fundo de modéstia
Reprimenda interna
Sensibilidade extrema
Medo do nada
Compulsão por viver o absoluto
Horizontes desvirginados
Emoções maculadas
Orgulhos em sangue
Metade de mim em ti
Metade de ti ao meu lado
Metade da gente fora de alcance
Perturbação das ondas funestas da razão poluente
Contemplação das muralhas emocionais do amor construtivo
Da primeira vez que ouvi teu nome
Não te amei como se amam as rosas do campo
Foste caindo em pétala feito chuva
Encharcando agora como luva a verde relva
Hoje, amada, teu nome é um perfume
Que derrama lume em meu caminho torto
Nele, ladrilhei pedrinhas de brilhante
No mesmo instante em que meu peito caiu morto
És minha lira,
Corro atrás de ti como num sonho
Num vai e vem que se desfaz a todo instante
Que retorce o peito em vasto e negro túnel
Ou mesmo em calda de estrela cintilante
Assim és porque és a um só tempo
Luz e escuridão,
Meu torpor e meu tormento
(A hora é preciosa, minha amiga!)
Escuta meu lamento!
Mas foges de mim assim
Como de Deus eu mesmo vou fugindo
(E é só por isso que na escuridão te encontro)
E nela vou te seguindo
A escuridão, esta íntima amiga
Parte teu rosto em pó e fio brilhante
Vou bebendo tua ausência inebriado
Mas basta ver-te e tudo recomeça...
Já és para mim a brisa da fontana
Tenha pressa!
Teu corpo é meu refúgio e meu abrigo
Tua loucura minha angústia e minha calma
Quero pintar girassóis para teus olhos
E de perfumes encharcar a tua alma
Ah querida amiga! Não perguntes se desejas
Já desistimos nesta vida ter verdade
Já desistimos nesta vida ter certezas
Ah meu amor, você já pode se afobar
Não existem futuros amantes
Nem amor que não seja para já
A dúvida é uma uva que encosto
Lentamente em tua boca
Minha louca! Minha amiga!
Esconjuro eu que não te amava
E nem beleza em ti então havia
Quero contar como cheguei a ver-te
Ou não ver-te como te vi um dia
Tu és o último dia da criação,
Que só neste instante fez sentido
Contemplo-te agora debaixo da árvore de sombra fresca
Desmentido.
Qual o quê, minha amiga?
Nosso amor é uma tarde clara,
A brisa em espiral e ousadia
Nosso amor é pôr-do-sol, amada!
Recolhas o arrebol desses teus olhos
O laranja que contemplas deslumbrada
Tudo por querer-te amor amor
E por não querer e querer-te enfim
Minha amiga, minha namorada!
Quero te amar, assim, em silêncio
Num momento calmo, fazer loucuras de amor contigo
Quero estar sempre e sempre ao teu lado
Quero ser teu refúgio e teu abrigo
Quero sentir teu beijo, fazer amor sorrindo
Quero ser teu amante e teu amigo
Nosso amor nasceu da mais profunda comunhão da alma
Se sou para ti e és para mim, minha amiga...
Não tenha mais calma!
Apressa-te! Venha comigo
Quero mostrar-te o quanto a vida é bela
Quero vazar em lágrimas tuas mãos
E ser pro coração tua janela
Depressa, teu pai já acordou
Vem com o teu amor!
Ele mesmo sorriu quando te viu contente
A sombra das nossas mãos que se tocaram
Nossos olhos que brilharam de repente.
Já não há o que temer
Nem sofrer de tanta espera
Mesmo que não ame te amando
Mesmo que te ame de tão bela.
O melhor detalhe é o que não se nota Nota tarde ou o quanto antes Pois de notas faz-se acorde Então acorde e tome nota Do relevante que ninguém nota Muito menos conta Por buscarem sem cota lá fora Sempre a maior nota
Lá, se a nota é baixa, não se paga a conta Mas aqui dentro, nesse peito, do lado esquerdo Há uma bomba com defeito Que descarta a nota exigda lá fora E nem cobra a conta Apenas chora E tenta, de nota em nota Construir o acorde que só ouve quem acorda
Dificil é ouvir, pois acordar e tomar nota de cada nota A cada dia, a cada hora A cada apelo de um coração que chora Como o meu
Fácil é ver que dificil é compreender o meu cantar Posto que esse cantar Que também é contar Segue o tom do meu acorde
As pernas já cansadas e rua após rua nada de eu achar Copacabana. Já estava lá, inclusive alojado em um apertamento de um amigo; porém, andava e me perguntava: “onde está a bela e pura Copacabana que eu esperava ver?” E assim seguia, atravessando-a do leme à ipanema em busca da sua velha beleza.
Durante diversos dias caminhei por lá: seja ao léu, seja indo pegar um metrô, procurar sebos, comer... e, além dos encantos das construções antigas, só víamos idosos,proletários e turistas. E aquele ar leve que eu esperava, nada. O bairro parecia ter envelhecido junto com seus moradores.
Estava com três amigos, e com eles fui à lapa, ipanema, botafogo, barra; em boates, bares, as recorrentes padarias, praias... Por acaso num domingo à noite resolvemos caminhar por Copacabana, sem destino fixo. Seguimos até perto da divisa com o Leme – infelizmente. Por lá só víamos prostitutas, casas de striptease, velhinhos explorando garotos de quinze anos e até sofremos uma tentativa de assalto. Copacabana realmente não era a mesma dos livros, histórias e da minha imaginação.
Certo dia dois de meus amigos foram à UFRJ, onde estudavam pela manhã, e permaneci com o outro na casa. Saímos para almoçar e nos dispersamos – ele foi ao cinema e eu em busca de sebos; já estávamos desacreditados sobre o bairro. Vasculhei coisas baratas e voltei ao apertamento para aguardar, enquanto lia um livro, a chegada deles.
Fiquei lendo por uns vinte minutos, até que um som começou a me intrigar. Fui à janela e procurei um volumoso violão. O quarteirão, que era formado por prédios antigos, que não possuíam nada além dos apartamentos, deixou um espaço vazio no seu meio; e no centro desta blindagem de concreto ficava uma casa com saída pelo edifício onde eu estava. Era uma casa simples, mas muito charmosa; chamava a atenção desde cedo, pois o patriarca a cada nascer do sol descia e, por conta própria, fazia prazerosamente a reforma do muro. Outro charme da casa eram os diversos gatos; chutaria haver uns 8, de todo tipo – o suficiente para nosso amigo entendido de gatos sentir o aroma deles do terceiro andar.
Mas o que importava mesmo acontecia no segundo andar da casa. Lá uma senhora, provavelmente esposa do reformador, estava sentada diante de duas outras senhoras dispondo de seus violões; e deles emanava uma forte e inesperada música que eu chutaria ser medieval. Entre uma música e outra lá estava eu, na janela, o privilegiado ouvinte apreciando o som que quebrava a monotonia do bairro.
Já havia abandonado meu livro e sentado diante da janela aguardava as próximas músicas, como em um verdadeiro show. Aquela casa era praticamente fechada pelos prédios, e eu não ouvia nenhum som de outros apartamentos, por mais próximos que fossem; o resultado da acústica era fenomenal! Ouvia a melodia ecoar pelo cômodo inteiro como uma verdadeira sinfonia. Empolgado comecei a imaginar quem seriam tais mulheres: teriam sido conhecidas musicistas aposentadas? Teriam acompanhado grandes artistas? Ainda tocam por aí? Ou apenas curtem a velhice como lhes convêm? Enquanto pensava, de súbito o concerto acabou e, depois de alguns dias, o meu passeio também; voltei sem saber quem são as violonistas cujo lirismo me contagiou. Mas uma coisa eu posso dizer: sei muito bem quem me apresentou à verdadeira copacabana – tão suave e bela quanto eu esperava.
Já sabia que, naquele momento, nenhum canal convinha à minha audiência, mas permanecia deitado, me divertindo mais em apertar botões e decorar o que estava em curso do que com o que me apresentavam. No fundo, queria prosseguir a leitura do Nobel “Os Buddenbrooks”, do alemão Thomas mann, ou jogar no computador; desejava fazer algo sem me preocupar com o tempo ou em ser interrompido.
Ao contrário da maioria, tenho uma propensão de ficar em casa. Adoro permanecer um feriado ou sábado ao léu: uma horinha lendo aqui, outra vendo um filme, mais à frente jogo algo... E desta rotina, certamente, liguei certas diversões minhas à falta de compromissos. Como posso ler um conto se tenho apenas vinte minutos? Preciso ler, ir ao dicionário, refletir e, o melhor, relembrar toda a leitura olhando o nada, com ar contemplativo. Logo, quando não tenho tempo, faço atividades nada profícuas, entregando-me a diversas e curtas ações ociosas.
E assim estava eu, entre televisão, computador, violão e idas à cozinha. O motivo para isto era simples: talvez haveria em quartos de horas um Sarau aqui em casa, com vários amigos e conhecidos deles. Seria o primeiro Sarau que eu participaria, e sentia-me entusiasmado para fazer parte de uma festa que reúne duas coisas notáveis: música e literatura. Por outro lado também tinha receios comuns a qualquer coisa nova, ainda mais envolvendo bebidas. Mas a grande questão era o “talvez” usado acima. Enquanto permanecia em afazeres que não necessitam grandes lucubrações, constantemente fazia ligações a quem tinha o encargo de me confirmar se haveria ou não o Sarau – todas em vão. E nisto, minha agitação aumentava junto com o trajeto do relógio; cada vez estava mais perto da hora que, caso fosse confirmado, aconteceria a festa.
Já passava do horário combinado e ninguém conseguia contato com o responsável pelo veredicto. Então finalmente decidi agir: já passavam quinze minutos da hora pretendida, ninguém era capaz de receber a confirmação, e certamente não sou o único a não ter certeza sobre o sarau; logo, repleto de sapiência concluí: não virá ninguém e não haverá sarau; melhor fazer algo decente da minha vida. E assim peguei meu livro e comecei a lê-lo.
Enquanto não tenho uma leitura muito vasta, certamente o Thomas Mann é o escritor que mais me deixa em êxtase durante a leitura; e tal êxtase só pode ser completo em momentos que podemos contemplá-lo à vontade, sem a menor interrupção – o que me iludi em considerar possível.
Com dez minutos de leitura, a campainha tocou. Sabia que não deveria ser ninguém para o sarau, era óbvio, mas como não percebi a movimentação de ninguém indo à porta, eu mesmo fui. Era para o sarau. O incumbido de confirmar estava lá, munido do seu violão, pronto para aguardar o pessoal e começar. Afirmei que ainda poderia haver o sarau, caso o pessoal topasse. Graças à infeliz comunicação, não toparam e ele saiu, ainda sem o celular funcionar – o que depois me fez pensar: “como alguns desinformados saberiam que foi cancelado?”.
Voltei à leitura, ludibriando-me que poderia relaxar. Durante uma hora a campainha tocou duas vezes e o interfone, uma. Parecia brincadeira; e o pior de tudo era que ninguém vinha para o sarau – eram amigas da minha irmã. E toda hora lá ia eu abrir mão da minha tranquilidade para já me imaginar na desagradável condição de quem diz “Desculpe, não haverá sarau; mas saiba que a culpa não foi minha, pois...”, e decerto não me sinto nada bem com isto, o que só fazia aumentar minha ansiedade para que a noite acabasse e eu não precisasse me preocupar com alguém chegando.
Minha concentração não era boa, mas eu insistia em ler, mesmo com a tensão que me dominava. Certa hora minha irmã abre a porta com alguma violência e, rapidamente, fico de alerta, sentando-me na cama. Ela diz com a voz um pouco opaca: “O Edson Medini está aí”. Dei um pulo da cama e retruquei exaltado: “O quê? Quem?”. Rápido fiquei afoito e imaginei: como falaria para o Edson Medini que não haveria sarau? Uma pessoa com nome tão sonoro e notável, que certamente só poderia ser concebido por família muito distinta, não poderia ter a infelicidade de vir aqui à toa. Já imaginava um homem de estatura média entrando em casa com uma mesura digna de homens veneráveis e imenso conhecimento, quando minha irmã fez uma careta e falou confusa: “Como assim quem? Eu só quero saber se o Hexomedine, remédio pra garganta, tá aí no teu quarto”. Ela apenas falou sem clareza por causa da garganta, e enfim pude me tranquilizar. Disse não saber onde estava e voltei a ler, anestesiado pelo susto.
Até chegou uma pessoa depois de um quarto de hora perguntando pelo sarau, mas simplesmente falei que não haveria nada, infelizmente. Mas nesta hora eu já seguia lendo tranquilamente. Me sentia um agraciado por não ter sido obrigado a abrir a porta e falar: “Me desculpe, ilustríssimo Edson Medini, mas...”.
Tenho que esquecer, mas hoje tenho um dever pra cumprir
Tentar me perdoar...
Porque só quem se perdoa pode tentar acertar
“Fazer pelos outros e sem deles esperar”
Não é uma regra de vida...
É uma vida pra se vigiar...
Deus! Quanto tempo pensei que isso fosse pagão!
Fazer pelos outros, desacreditando retribuição...
... Fazer pelos outros, desacreditando retribuição...
Do que isso, há alguma coisa mais "cristão"?
E logo o Sol aparece....
- Passei a noite inteira te esperando -...
-Desculpa pela briga no “Pôr” de ontem -...
-É que a noite, mesmo pelo preço dos meus pesadelos – que pago satisfazendo os meus desejos – o silencio e o frio me acomodam ....
...Igualzinho como aqueles amigos que mamãe pedia para que eu me afastasse...
Mas eram os que mais eu gostava de andar...
Alguns me entendiam...
Outros...só queriam estar
....esperando o Sol nascer... e voltar a dormir...
-Bom dia.... -
-Me deseje bons pesadelos -
Doce Irrazão... como queria ter mais tempo pra dialogar contigo....
Como queria ter menos culpa pra te conhecer...
Mas é a culpa que me deixa continuar...
Mesmo que errantemente....
Mesmo em torno da estrela do “sistema culpar”...
Onde fico dando voltas eternamente...
E eternamente vendo o Sol raiar...
-E é justamente o momento em que me lembro...que ainda preciso rimar -.
Ricardo Evandro Santos Martins 12/11/2010.
fonte da foto :http://www.flickr.com/photos/18220895@N04/2279854064/
Terminei de ler agora o “A traição dos intelectuais”, de Julien Benda, um livro fundamental para todos aqueles que querem ter um quadro bem delineado e justo de como vem sido exercido o intelecto pelo mundo moderno, nos termos do livro, a recusa dos valores universais e a consequente subjugação do espiritual ao temporal; por isso, serve de guia a todos os quem se preocupam em ter uma formação séria, baseada nos valores intelectuais por excelência a justiça, a verdade e a razão. Seguindo a linha dos intelectuais, os únicos verdadeiros para ele, que tem como atitude de vida suprema morrer pelos valores universais, como um Sócrates, um Platão ou um Aristóteles, acredita que estes intelectuais são “crucificados, mas sua palavra habita a memória dos homens”. Tem como epígrafe esta sentença de Renouvier que ilustra profeticamente qual será o tom da obra: “O mundo padece da falta de fé em uma verdade transcendente”, o que tal padecimento é perfeitamente explorado e demonstrado na obra.
Muito aclamada na França do século passado, e, também muito mal compreendida, como todas as grandes obras, foi considerada pelo poeta brasileiro Bruno Tolentino um dos maiores livros do sec. XX, leitura indispensável.
Trecho final do livro:
"Chegar-se-á assim a uma "fraternidade universal", mas que, longe de ser a abolição do espírito de nação com seus apetites e orgulhos, será, ao contrário, a forma suprema dele, a nação chamando-se Homem e o inimigo chamando-se Deus. E a partir de então, unificada em um imenso exército, em uma imensa fábrica, não conhecendo mais senão heroísmos, disciplinas e invenções, desacreditando toda atividade livre e desinteressada, desistindo de pôr o bem para além do mundo real e tendo por deus somente ela mesma e suas vontades, a humanidade alcançará grandes realizações, quero dizer, um domínio realmente grandioso sobre a matéria que a cerca, uma consciência realmente satisfeita com seu poder e sua grandeza. E a história sorrirá de pensar que Sócrates e Jesus Cristo morreram por essa espécie."
É de grande valor também o seu diagnóstico da debacle da arte, prostituída no puro sentir, na qual há o pleno enfraquecimento da razão, que passou a ser desacredita e até vista como impedimento às produções artísticas, sem nunca desconfiarem, estes cantores da arte contemporânea que "jamais Victor Hugo, Lamartine ou Michelet se glorificaram de desprezar nas coisas seus valores de razão, para nelas estimar apenas seus valores de arte". Em termos mais claros e diretos: "Quanto a essa decisão dos homens de letras de solicitar seus julgamentos apenas à sensibilidade artística, ela não é senão um aspecto da vontade que possuem, desde o romantismo, de exaltar o sentimento à custa do pensamento, vontade que e ela própria um efeito (entre mil) do rebaixamento neles da disciplina intelectual.". Outro acento bem posto por ele é que sempre a exaltação do sentir, e a sede interminável, a todo o custo, tem como consequência o entendimento de que o artista é um ser excepcional, algo que para os antepassados, os da Tradição, seriam apenas pensamentos extravagantes.
Os pergaminhos do tempo Te mantiveram viva em mim Como lenda insustentável Como algo inopinável
As incontáveis estrelas Que sempre surgem Em céus diferentes das cidades Jaspearam os teus olhos Moldados em fogo e luz
Transpirei o veneno que me deixaste Expurguei quase toda a mentira Que eu mesmo mantive viva Fechei meus braços sobre meu corpo E prendi com dureza a única verdade que me restava
Arregalaste os horizontes fechados Penetraste no mundo além do mundo No eu além do eu Quebraste as fronteiras do certo e errado
É. De fato és a superação de ti És o monumento erguido de amor e ódio Guerra e paz entre opostos És moldada pelo bem e pelo mal
Estás no centro de tudo Mediando toda divindade e paixão Meditando toda loucura e razão Santuário dos contrários Repudio dos sensatos Temor dos exatos
Eu não compreendo teu pensar Por isso talvez me interesse tanto Pela tua insensatez constante Pelo teu barato irritante
És a estupidez sensível A menina invisível Que se esconde em mulher De beleza e grandes olhos
És o medo de mim O feio de ti O belo dali E o meio do mundo.
O corpo da nova musa insurgiu-se em minha palma Despertando como rosa preguiçosa em verso lânguido Cantavam deuses que a viam como extasiados Era a mais nova Vênus que nascia.
No primeiro dia ela descansou. E, logo, o mundo era todo seu. A nova musa dançava alegremente em seu vestido Traçava arcos e espirais rodopiando Tingindo de sal e amarelo os girassóis do campo.
O sorriso da nova musa também rodou o mundo. Sortiu mistérios e até chorou sozinho. Desconfio que compartilhei com a nova musa a riqueza Daqueles que viveram a mais profunda solidão da alma
O sorriso da nova musa me atrai e me fascina Fazendo-me aspergir de encanto e imitar a arte De bondade e de malícia que transpira a musa Que me ata de repulsa e de vontade
Serão meus olhos poesia ou paisagem Para os olhos da musa que passeia impune pela vida? Em lábios que me param o próprio tempo Em gestos que derramam despedida.
Quando fui a Londres fazer intercâmbio no primeiro semestre desse ano, tive a grandiosa oportunidade de poder conferir no Southbank Centre os concertos quarto e quinto de Brandenburgo de Bach e as sinfonias sétima e nona de Beethoven, nessas músicas tudo está expresso, as imagens perfeitamente plásticas nos concertos de Bach, e não menos diferente do alemão do período Clássico, contudo, acrescentando que a nona sinfonia é o misto perfeito e continuo da dualidade que rege as nossas vidas como a felicidade a tristeza o amor o desamor a guerra a paz, e nada mais podemos fazer do que nos vangloriar da nossa humanidade por estes homens, como partícipes da mesma espécie dos que nos possibilitaram a redenção por meio de sons que ultrapassam a cada nova visita esta realidade material nos oferecendo e nos guiando quanto o significado de nossas vidas. Nelas, não há nem tanta desgraça quanto em um desvairado Stravinsky quanto moleza passiva de um Wagner segundo a interpretação de Nietzsche, que concordo. A presença de desgraça exacerbada é um dos pontos referencias quanto a qualificação de uma arte em boa ou ruim, não há meio-termos quando o artista ao invés de nos oferecer o Transcendente, que impõe, não há outras palavra melhores, respeito e beatitude, nos oferece gritando como uma criança perdida na praia todas as suas dores, como se elas fossem as nossas, mais, como se Arte devesse tratar tão abertamente disso, devemos dizer-lhe que isso não é Arte, é a sua subjetividade e não há nada de objetivo nisso. Pois bem, contrapondo a isso, fui, em outro dia, no Queen Elizabeth Hall, um dos anexos do Southbank, conferir um dos mais “reconhecidos” músicos da cena erudita britânica contemporânea. Sentei, peguei o meu lugar, esperei alguns minutos, li alguma coisa de T. S. Eliot, e, adentra o tão aclamado músico... Deveria continuar a ler Eliot... Começa e logo no início já sei que tudo o que ele tem a me oferecer são as suas dores subjetivas, não há imagens bem feitas, há a materialidade exacerbada, há o Infinito sem ponto de apoio na vida que é refletido a cada segundo em sua música, ou o que ele chama disso, há o individualismo, surtos de grandezas e logo em seguida mostra-se nu em toda a sua vileza, há ele, o artista crendo ser maior do que a sua arte, em suma, não tem nenhum profundo respeito pelo que se faz e muito menos quantidade alguma de autocrítica. Em um paralelo, enquanto ao escutar Beethoven penso que o homem tem força espiritual para fazer o que ele fez em um ou dois instrumentos caso só estes fossem o existente e que fora um extremamente confiante em decorrência do saber da grandiosa força vital de sua arte, tal como no filme homônimo é mostrado, nesse outro sujeito que se diz músico pode-se dar a ele um milhão e meio de instrumentos que vai se ver perdido do mesmo jeito, e, ademais, se caso um dia venha a ler essas linhas trancar-se-á em seu mundinho subjetivo dizendo a plenos pulmões que “os críticos são todos invejosos”... O bem da verdade é que, tal famoso músico consegue tão-só nos oferecer esse monte de merda que poderia ser resolvido com mais idas ao seu psicanalista. A grande força criativa está na alma aberta ao Espírito, não no papel, não nos instrumentos musicais, muito menos no divã.
Embora não tenha terminado de ler todas as obras de Kafka, farei uma análise demonstrando o quanto esse autor é mal compreendido, o que de fato sempre é falado quando alguém tenta interpretá-lo, utilizarei três livros, os “Diários” do próprio autor; uma interpretação socialista feita por Leandro Konder; e o romance “O processo”.
Primeiro vou partir de uma afirmação de que o autor é com toda a certeza judeu. Por quê? Isso fica evidente no seu diário quando em várias partes dele o autor pensa como um judeu, em qual sentido? Em buscar as soluções da religião judaica à época. Ficando claro nesse trecho: “Deverá dizer a si mesmo que – falando sobre os leitores de uma obra sobre a história de judeus de sua época-, principalmente após o surgimento do sionismo, as possibilidades de solução estão de tal modo evidentemente agrupadas em redor do problema judaico, que afinal de contas basta o autor fazer apenas um movimento para achar a solução que dá resposta à parte do problema.”. Ora, é bastante razoável que um membro de uma dada religião esteja preocupado sobre o futuro de sua própria religião, como, por exemplo, um cristão apoiar ou desapoiar o que tem sido as conseqüências do Concílio Vaticano II. Portanto, é falso quando Leandro Konder diz em sua obra Kafka “Vida e Obra” que “Apesar de uma tremenda necessidade de crer em algo, Kafka jamais chegou a encontrar paz de espírito em qualquer fé ou em qualquer Igreja.”. Tal como ele Leandro mesmo encontrara nas suas utopias salvadoras da humanidade... Mas partimos à obra “O processo”.
No final do livro, que é o que mais ajuda a esclarecê-lo, K., o acusado, entabula uma conversa com um Sacerdote, dizendo no início sobre a disponibilidade e preocupação desse mesmo Sacerdote em relação a ele “Você é muito amável comigo... Tenho mais confiança em você do que em qualquer um dos outros tantos que já conheço...”. Veremos aonde esta tal confiança irá ser levada logo adiante.
Em uma parábola narrada por este Sacerdote ao processado "K." um homem do campo, que logo em seguir afirmarei que é um niilista ou o próprio "K.", que tenta entrar nos domínios da Lei, ou seja, no mundo jurídico, é impedido de adentrar neste mesmo local por um porteiro que é um simples operador do Direito, não diminuo essa importância, pois fazer isso, seria tomar uma atitude niilista, já vou me explicar, que como fala o Sacerdote “foi incumbido pela lei de realizar um serviço; duvidar de sua dignidade seria o mesmo que duvidar da lei.”, um pouco mais atrás o mesmo Sacerdote fala que tal serviço é “incomparavelmente mais do que viver livre do mundo”. Quem seria esse homem livre no mundo senão um livre-pensador e que por isso mesmo é niilista? Já explico. O Sacerdote tal como o Aliócha são os seres-humanos em que acreditam profundamente em alguma coisa e por isso afastando-os da falta de valores niilista, vêem as coisas claramente no sentido de que, o primeiro, de entender que o porteiro não faz mais do que executar o seu trabalho como participante do mundo jurídico, e o segundo, de ser fiel à verdade religiosa - na verdade, ambos o são, mas estas são as principais caracacterísticas deles expostas nos dois romances -. Portanto há dois pares de personagens que são o extremo oposto tanto nos “Os irmãos Karamázov” quanto no “O Processo”, quais são? O Sacerdote e o Aliócha como os não-niilistas e K. e Ivan Fiódorovitch como os que negam qualquer validade à vida, o primeiro morre como um cão “era como se a vergonha devesse sobreviver a ele” e o segundo fica louco.
E por que K. é niilista? Porque como o Sacerdote lhe falou “não é preciso considerar tudo como verdade, é preciso considerar apenas como necessário...”. O que é o necessário? Crer, apesar de todas as suas falhas, na extrema importância do mundo jurídico às nossas vidas. Como um bebezinho mimado o niilista K. refuta “A mentira se converte em ordem universal...”. Ora, o positivista é aquele que nos sonhos crê no progresso, o que certa hora acabará por tornar-se também cético, já que o progresso não é constante, e o socialista é aquele que parte do princípio que o mundo é o pior dos possíveis buscando a salvação da sua vida em um projeto utópico, o que já é, de início, a negação de viver o presente, e de encontrar possibilidades de valores vivíveis. Ambos, são niilistas. Falo tanto do positivista quanto do socialista pois são arqui-presentes desde o início da ilustração.
Lembrem-se que o niilismo é a negação de valores orientadores à vida, e a sua principal característica é o não reconhecimento de valores tanto para si quanto na vida dos outros. Com “K.” não foi diferente. Diferentemente do início no qual deposita confiança na ajuda do Sacerdote, e após este ter demonstrado a ele como as coisas funcionam, ou seja, o caráter necessário de um operador do Direito, “K.” lhe fala “mas eu não consigo me orientar sozinho no escuro”, e mais adiante “antes você foi tão amável comigo, explicou-me tudo, mas agora me despede como se eu não significasse nada para você”. Ora, isso não é atitude de um garotinho de 12 anos que requer tudo para si e não aceita que os com quem tem inimizades brinquem de futebol com ele? Antes, o Sacerdote era reconhecido como um homem bom, ou seja, até o momento em que este serviu para o consolo da mente perturbada de K., embora não tenha sido um consolo já que para “K.” só a morte funciona, porque nada para ele é válido e quer continuamente fazer os outros crerem nisso, agora, como o homem religioso era reconhecido por K.? “Você é o capelão do presídio”, somente como um trabalhador qualquer, sem nenhuma ordem hierárquica de valores, que é o niilismo. K. disse-lhe “você precisa compreender” ao que o Sacerdote responde “Você precisa primeiro compreender quem eu sou!.” O niilista K. no seu não reconhecimento da vida religiosa do Sacerdote e da necessariedade do Direito é somente aquele que não reconhece a importância dos valores superiores à vida. Pondo em miúdos, não compreender o que é um sacerdote, o que per si requer uma atitude respeitosa e o que é o Direito são atitudes niilistas.
Embora no último capítulo “K.” comece a reconhecer quão desnecessário fora ter entendido o mundo por uma lente reprovativa, como um bom niilista, em um repente de interrogações em que vira uma pessoa aparecer ex nihilo ainda com esperanças de ser salvo –o que o Sacerdote tinha tentado fazer-, não tem mais tempo, pois o pensamento nunca encontra alguma base fixa para se apoiar, logo tudo acaba sendo ruim, pois tudo é desgraça para ele, como o Kafka, não “K.” escreve “Existem objeções que tinham sido esquecidas? Sem dúvida, estas existem.”. E sempre hão de existir, senhores. Uma morte como um cão foram as últimas palavras de “K.” e Kafka escreve “Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele”.
A palavra não vem Nunca vem Renitem em emergir em resquícios quando o acaso convém No banho No trono No sono No sonho Só vem o espanto De sentir que o vivido de cada âmago É ao papel Como o céu é para cada estrela Poesia... imitação Papel... uma prisão Que disciplina e acalenta o inominável Tentando enfeitar a precária palavra
A palavra não vem Quando vem, já não é a coisa mesma Está disfarçada Emana beleza É válida Induz alegria, melancolia, tristeza Embebeda e sublima a mente abita
A palavra não vem O papel suprime a essência O labor a lapida e a deixa enfeitada Obriga-lhe a assumir sua prudência Mas provem de lugar inexplorado Inabitado Onde nada se explica É inexplicável ... Dentro de nós
A palavra não vem É melhor não vir Às vezes também E só deixar, do vivido, o resquício advir Para que cause o espanto esquecido de alguém De quem o sorriso ou o pranto falarão por si
Antes de mais nada acredito que cumpre-me agradecer o convite que me fora enviado pelo grande amigo Ricardo Evandro que, a meu pedido, incluiu-me no rol dos colaboradores deste blog. Gostaria de deixar claro aos amigos e leitores que não esperem de mim atuações tão brilhantes quanto a dos colegas que aqui também postam. Tentarei cumprir minha parte, somando esforços aos dos companheiros no intuito de compártilhar idéias e artes que por sua natureza devem servir como instrumento de edificação do homem. Desde já, gostaria de explicitar a minha incontrolável vontade de demonstrar o quão agradecido estou em poder compartilhar este espaço com pessoas as quais eu tanto admiro. Pelo que, como ainda tenho muito a falar, mas as palavras me escapolem quando se trata de mencionar o quão preciosa é uma loja como essa, deixarei este momento com uma poesia a qual representa o meu minuto de silêncio em reverência aos homens de boa vontade que aqui comungam.
Silêncio Hoje, por algum motivo, eu acordei gritando Gritava incontrolavelmente, sem saber a que ventos gritar Gritei por minha mãe, por meu pai, por meu irmão Gritei na cara deles, mas nenhum deles me ouviu
Passado alguns minutos, entendi que o que gritava era o meu próprio silêncio Esse silêncio que as vezes me toma e o mundo deixa de ser parte de mim para se tornar alheio De vez em quando o dia amanhece barulhento, cheio de idéias, cheio de ruídos inconvenientes. É ai que rezo para que o silêncio venha Mas os dias de silêncio me sufocam, me humilham, me diminuem as idéias
Os dias de silêncio não perdoam os passos em falso Os dias de silêncio me obstruem o escrever As idéias não fluem, meu corpo padece Parece que a vida sai um pouco de mim Os dias de silêncio são tão tristes, as pessoas falam e eu não ouço
As idéias rangem ao pé do meu ouvido, mas não as compreendo Esses dias são tão terrivelmente pacatos Nos dias de barulho procuro o meu silêncio Mas nos dias de silêncio procuro o grito profundo e melancólico que move minha caneta Nos dias de barulho quero o silêncio para concatenar idéias Nos dias de silêncio procuro tudo aquilo que fale mais alto dentro de mim
E hoje, algo entre o silêncio e o barulho me bateu a porta Algo de doce, algo de firme, algo de inspiração, algo de amor, algo de tristeza, algo de saudade Algo que me permite, algo que me liberta, algo que me arranha, algo de algo Algo de verdade, algo pertinente, algo de lúcido É onde o homem pode se encontrar por completo: um momento pobremente escasso de contradição.
Acabei de ler o conto do meu amigo David que por sinal é muito bom, levando em consideração tanto a sua jovialidade, 22 anos, quanto tomando como referência os seus contos postados neste blog que não são muitos, portanto uma relativa pequena produtividade. Não fica nem um pouco atrás, em termos de profundidade psicológica, que é o que tem mais de rico nesse conto, somado a alguns parágrafos de uma grande riqueza metafórica, aos contos de uma Lygia Fagundes Telles. Sem bajulação alguma, mas esse conto é bom. Ao ler, destaquei alguns pontos que me chamaram atenção, no que tange à estrutura do conto, que serão entendidos somente por quem já o leu:
1. Falta coerência no uso da linguagem popular do personagem principal, visto que o contista conjuga por vezes os verbos em norma culta no decorrer do diálogo interior do personagem e também em seus diálogos reais com o leitor, causando incoerência na representação e delineação artística do protagonista. Nesse caso fica claro: “Aquela água parecia que me revirava por dentro, fazendo-me questionar coisas sobra as quais jamais pensara. Doidera?” É difícil imaginar um personagem popular que tem como palavra comum em seu vocabulário a palavra “doidera” conjugando o verbo pensar no pretérito-mais-que-perfeito.
2. O quinto-parágrafo do conto é sem dúvida alguma o que tem mais beleza artística propriamente dito, são 9 linhas que possuem já uma precoce proximidade do autor com as palavras, produzindo-as com ricas metáforas.
3. É bem peculiar o diálogo do personagem com o leitor, pois há por vezes contatos mais ternos no sentido de o narrador como em uma conversa filosófica jogar por alto o entendimento dele ao leitor e noutras o leitor ser tomado como onisciente quando ele sabe inclusive qual é o dia que se passa o conto, sendo convocado a aceitar a priori o entender do narrador, não em assentir flexivelmente como quando o personagem pergunta ao leitor “Pudesse ser assim?” ou “Não é certo o que eu digo?"
A par desses pontos estruturais, é interessante o constante diálogo interior do personagem com a vida cotidiana e o seu constante distanciamento a ela, em um enveredamento filosófico de conhecer-se a si mesmo e com isso sabendo cada vez mais qual é o seu lugar no mundo, quiçá o seu distanciamento pleno. O personagem reconhecendo aos poucos os sofrimentos pelo quais o pai sofre que tragicamente virá a sofrer, ou melhor, no momento mesmo em que esse reconhecimento passa a se dar as dores advém como intimamente intricadas no entender das dores do pai, é seduzido pela infinita fuga de si mesmo querendo mas não podendo mover-se pois seus pés estão e são imóveis, presos na terra. Momento chave para o personagem que deve ou buscar o desbravamento do mundo desconhecido que ao fim e a cabo muito provavelmente irá consistir em um ceticismo ou acreditar, enfrentando em uma solidão resignada, no profundo e verdadeiro ensinamento de seu pai quando lhe fala: "a mentira tem pernas bonitas, meu filho."
"a perfeita união da natureza do leão com a sua dominação cheia de mensidão para com a essência oposta de sua leoa, que ama por amar, embora ame o tolo, mas que não o é em usar de sua juba protetora, sendo tal que é o reconhecimento profundo da beleza de sua oposta e congruente natureza, elevando-a para elevar-se, glorificando-ses."
Naqueles tempos, éramos eu e o Pai. Na verdade, também tinha a Malhada, mas não sei se ela conta não. O que me diz o senhor? Pelo menos, devesse contar. Para nós, o senhor sabe, ela era assim, quase que um membro da família. E por falar em família, tenho que lhe dizer. O Pai teimava comigo que éramos uma família como outra qualquer. Mas hoje, sinceramente, tenho para mim que ele me dizia essas coisas só mesmo para me alegrar. Afinal, não era todo mundo que concordasse que uma família assim sem mãe fosse uma família normal.O dia em que ela foi-se embora, eu nem me lembro mais.
Nunca tive a esperança de que ela voltasse, apesar de o ter pressentido uma vez, deitado na janela. Nesse dia, meus olhos corriam longe que só o senhor visse. Mas tudo não passou de ilusão. Também nunca pedi ao Pai me falasse daquela mulher, como, por vezes, ele a chamava. Ela voltando, era mais um motivo para que eu me quedasse ali, quando sabia que existia todo um mundão aí afora. Mas o Pai, apesar de sempre me dizer que não gostava de tocar no assunto, acabava terminando por falar “naquele nome”, com todas as tristezas que ele sempre trazia. E então me punha a ouvir, mais uma vez, aquela história de amor que tinha um final triste, como, aliás, eram todas as histórias de amor para o Pai. “A mentira tem pernas bonitas, meu filho”, repetia. E então, suspirava e fazia um longo silêncio. “Mas sua mãe era uma boa pessoa. Não quero que penses mal dela”. Ele dizia assim, com a mão encostada no queixo.
Naqueles tempos, para falar a verdade, nem sabia se eu era triste ou feliz. Ia vivendo. Ia correndo e crescendo por aquelas bandas, meio solto, meio preso, respirando e torcendo, me ralando por vezes, ao final, levantando sempre. Às vezes, sentia que algo me prendia ali naquela terra, e não era por causa do barro alaranjado que se pregava liguento sob os meus pés descalços. Era uma sensação de não saber se podia, se realmente podia com tudo aquilo que existia para além dos meus olhos. Será que fora dali se andava diferente, se respirava de modo diferente? Vai ver era bobagem da minha cabeça. Mas, bem lá no fundo, era um pensamento que sempre vinha me visitar, com aqueles seus passamentos na barriga ou aquela vontadezinha de ficar só comigo. Acho que nem não era tão triste assim. Se entristecer assim do nada é bobagem, não é mesmo? Vai era só cansaço, que vinha do nada e do nada se ia, como se nunca houvesse chegado. Na verdade, eu acho que naqueles tempos eu cansava mesmo era de solidão. Não é certo o que eu digo?
Devia de ser por aí. Acho que na vida não nascemos tristes nem felizes, tudo é uma questão de pertencimento, sentir-se parte, o senhor sabe? Pertencer assim a pessoas, lugares ou mesmo àquelas paisagens, que de tão lindas prendem nossos olhos como se quisessem até namorar com a gente. Naquela solidão, cheguei até mesmo a dar para inventar meu próprio mundo, a brincar de ser rei e correr terra, sendo de tudo um pouco, a cada segundo. Nessa história já fui pássaro, herói e até vilão. Mas, nestes enredos, o melhor de tudo era se apaixonar. Ah, como era bom. Amor de mulher bonita, formosa, meio tímida e maliciosa, com cheiro de flor e beijo de tarde preguiçosa. Vai ver toda solidão é uma espécie de loucura. E a minha, longe de me libertar, me prendia mais e mais àquela terra.
E no auge da minha inocente loucura, passei a conversar e convidar as casas do vilarejo a visitarem meu mundo, misturando dentro de mim seus formatos e suas cores, imaginando os sons do vento batendo nos telhados e fantasiando o tempo e as histórias que elas carregavam consigo ao longo daqueles anos. Acho que o que me impressionava nelas é que quando tudo passava, quando todos morriam ou iam-se embora, elas ainda estavam lá, vivinhas e firmes como pedra, prontas para contar todas as histórias.Histórias dos nascimentos, namoros e conquistas daquelas pessoas que, perto delas, passavam tão rápido como uma brisa de tarde. Será que quando nem eu nem o Pai fôssemos, elas ainda estariam lá para contar a história de nossas saudades? O senhor deve saber melhor do que eu.
Mas das casas, na verdade, só não gostava era da minha mesmo. As casas nossas assim, vistas de dentro, parecem como que devoradoras de gente. A minha então, era um nozinho na garganta. Foi o que acabei por comprovar no dia da chuva. Eu estava ali, mal acabara de chegar, trazendo os panos e a serragem que o Pai havia pedido, quando começou o aguaceiro. Com ele, a tempestade foi trazendo também todos aqueles barulhos e fraquezas de sempre. E eu, naquele instante, olhando pela janela, era como se cada gota que caísse fosse parar bem dentro de mim, como se o peito meu fosse feito daquela mesma terra molhada que a agora a chuva encharcava. E ela ia entrando, se acomodando pelas frestas e goteiras, pingando sobre minha cabeça, jorrando diante dos meus olhos, ficando também dentro de mim. Aquela água parecia que me revirava por dentro, fazendo-me questionar coisas sobre as quais jamais pensara. Doideira? Tentava tirar de mim esses pensamentos, fechava os olhos, tentava me concentrar em alguma coisa. Quisera eu, naqueles tempos, que os pensamentos também se fechassem junto com os olhos. Será que todas as crianças sentiam coisas assim? Era o que eu me perguntava naqueles tempos, quando o meu pequeno corpo já não cabia mais em si de alguma coisa, alguma coisa que, quando eu ia pensar o que era, se desmanchava diante dos meus olhos, ou que, quando vinha ao pensamento, já distanciava vagamente do sentir. Hoje, quando tento olhar para trás e pensar nisso tudo, falta-me mesmo uma imagem que dê vazão a qualquer palavra. Careço de entender essas coisas. Na verdade, o senhor sabe, olhar para trás é quase sempre como inventar algo, imprimir uma intenção ao passado, buscando qualquer coisa que dê sentido aos anos idos. No final das contas, acho que o melhor mesmo da infância são só as lembranças que inventamos, os contos de fadas que sobram no mar do indizível.
O fato é que, no meio da chuvarada toda, o Pai estava ali, costurando alguma coisa que só Deus sabia para que servisse. E, enquanto mais ele trabalhava, mais se punha a falar, falar e falar. Era quando eu virava para a malhada, tentando imaginar como ela via o mundo nosso. Nessas horas, chegava até pensar que a Malhada era gente, gente mesmo, daquelas que entendem das coisas, no sabendo - não sabendo. Eu tinha isso para mim acho que era por causa daqueles olhares vagos, daqueles momentos em que ela se levantava e ficava olhando para o Pai, com aquela terna melancolia, como se no arregalar daqueles olhos, ela afagasse ou lambesse os sofrimentos do velho. Nessas horas, a Malhada mais parecia um anjo, daqueles que olham assim para os pecadinhos humanos sem julgá-los por seus erros e talvez até mesmo felizes pela fé que os anima. Era assim que eu a via naqueles tempos. Mas por dever de prudência ou medo da loucura, tentava desver. Corria, então, para ouvir o pai, que depois de tanto palavrório, parecia que se arrependesse do que dizia. “Vá dormir meu filho, vá dormir”. E era o que eu fazia. E foi o que eu fiz naquela noite.
De manhã, como é do vosso conhecimento, era Sábado de Aleluia. O pai me acordou o Sol mal estava nascendo. Dei um pulo na cama e, mal-humorado, fui atrás do velho. Ao apressar dele, corri ao encontro daquele homem, meu Pai, meu irmão das Almas. “Pronto para a malhação de Judas?”, perguntou. Eu não sabia o que respondesse. Na dúvida, continuei andando. Caminhamos alguns quilômetros até a cidade, onde ia ter parte a tal da malhação. Meus pés já estavam quase que rachando naquele sol quente. No andar, o pai ia quieto, mas seu cenho franzido parecia transbordar de dizeres. No caminhar ao lado daquele homem, sentia que aos poucos eu, que ainda era menino, ia como criando também passos de homem. Tentava imitar seu andar, seu falar e as coisas que ele dizia, mas pensava comigo que Deus me livrasse de sofrer tanto assim na vida. Queria ser filho dele em tudo, mas não por parte de sofrimento. Por alguns mistérios dessa nossa travessia, dizem que o sangue passa mesmo de uma só vez e eu, mesmo sem perceber, já começava a sofrer também. Sentia que alguém tinha derramado o coração do Pai todinho dentro do meu e que ambos tínhamos nascido para aqueles sofrimentos. Pudesse ser assim?
Quando dei por mim, o pai resolveu parar. E ficou ali, com aquela boca aberta e o olhar distante, perdidinho naquela imensidão de terra seca, quase que se misturando com a paisagem toda. Então, como se não existisse mais nada no mundo, ele começou a observar atentamente o tal do Judas que trazia consigo, com uma cara assim, daquelas que alguém faz quando pensa alguma engenhosidade. De repente, tirou a camisa velha que trazia e vestiu no boneco. Depois, observou a cena por mais alguns segundos. Respirou profundamente. Resolveu botar também o chapéu. Ao final, contemplou o que tinha feito e viu que era bom. O Judas, agora, era todinho o Pai, só faltava mesmo era o sopro daqueles olhos distantes, talvez o entristecer ao fim do dia. Por que fizesse aquilo? Não carecia de perguntar, ele mesmo respondeu. “Pra deixar de ser besta, meu filho. Pra deixar de ser besta de sair da nossa terra e vir pra este lugar, onde só Deus, só Deus é por nós.” A verdade é que, na vida minha, aquela era a única terra que eu conhecia, mas, por algum motivo, quem sabe por ser filho do Pai, ou quem sabe por não ser filho de quem quer que seja, sentia que aquele lugar também não me pertencesse. Talvez de mim mesmo, meu senhor, fosse só a travessia.
Como era de ser, o Judas foi levado à Malhação, com os pertences do Pai e tudo. Quando retornamos à casa, o velho parecia cansado, não sei de andança ou de solidão. Como de costume, sentou-se na cadeira de sempre e começou a olhar para o fundo de um copo vazio. No olhar, a Malhada o velava sem cessar, como fazia todos os dias à sua chegada. Tudo do mesmo jeito, tudo como havia de ser. Como se não houvesse mais o que fazer, respirei fundo e fui ter à janela. Debrucei-me sobre o parapeito e me pus a contemplar a paisagem que cabia naquela moldura. Não demorou para que meus olhos começassem a vaguear. Através daquela janela, tudo parecia distante. Ao mesmo tempo, era como se todo o mundo coubesse ali. Mas já não me contentava em ver o mundo daquele jeito. Eu queria tocá-lo, sentir seu cheiro, sentir meu pé roçando em outros campos e terras. Era quando no meio desses devaneios, eu lembrava do Pai. O que seria dele quando eu não estivesse mais ali?
Mas não. Eu bem sabia. Não era o Pai quem me impedia de partir. Dele, de alguma forma, eu já havia partido faz tempo. Era aquele incontável, aquele indizível, aquele nó na garganta que me arrebatou no dia da chuva e me espremeu contra meu mundo que agora me devorava pela simples possibilidade de partir. Será que tudo ia continuar assim para sempre e nada mais iria acontecer? O que poderia me prender agora? Será que era aquela casa, o Judas ou Pai? Só sabia que precisava partir e partir logo. Mas meus pés não se moviam. Não é mesmo a terra o que prende os nossos pés. Olhando pela janela, me deu vontade de chorar. E era como se todo o mundo coubesse ali. O senhor sabe? Era preciso correr terra.